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Descriminalização do aborto é ‘tendência na América Latina’? Entenda reflexos da ‘maré verde’ no Brasil

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Recentemente, a Colômbia tornou legal a interrupção voluntária da gravidez, se unindo a Argentina, Chile e México; valores morais e religiosos explicam entraves nas discussões do Congresso brasileiro

Na última semana, a Suprema Corte da Colômbia aprovou a descriminalização do aborto. Com cinco votos favoráveis, os parlamentares estabeleceram autorização para procedimentos feitos até a 24ª semana de gestação, equivalente a seis meses. Anteriormente, a interrupção voluntária da gravidez era permitida apenas em caso de má formação do feto, risco materno ou estupro. Embora seja a decisão mais recente, a mudança no Código Penal colombiano não é um caso isolado na América Latina. Nos últimos anos, outros países adotaram ações semelhantes, como o México, Argentina e Chile, em um movimento conhecido como “maré verde”, que representa uma tendência mundial que pode – cedo ou tarde – refletir no Brasil. “É um movimento de todos os países da América Latina de pelo menos olhar, discutir e talvez até alterar uma legislação”, afirma Jackie Anacleto, especialista em direito da mulher e da família. 

A advogada avalia, no entanto, que é difícil estimar quando essa discussão sobre a descriminalização deve avançar no Brasil. Para ela, o entendimento é que o avanço pode começar pelo Judiciário, na figura do Supremo Tribunal Federal (STF), não do Congresso Nacional. “A criminalização do aborto é muito ligada à moral, à religião. Então é difícil pelo Legislativo mudar essa situação, porque os parlamentares acabam enfrentando uma recusa da sociedade. Essa discussão não coloca como prioridade nem a vida da mulher e nem a do feto. Então, não chega a lugar nenhum, porque os abortos continuam ocorrendo, não se tem política pública para favorecer a vida do embrião e nada se faz para proteger a vida da mãe. E a liberdade da mulher fica a serviço do Estado.”, menciona Anacleto.

Além dessa resistência já existente, o período eleitoral também faz com que temas considerados “espinhosos” sejam evitados pelos parlamentes, o que praticamente elimina as chances de avanços de pautas polêmicas – como o aborto – no Legislativo em 2022. Mesmo assim, embora longe dos debates, a interrupção da gravidez na Colômbia repercutiu entre as lideranças políticas brasileiras. Se de um lado partidos de esquerda e seus filiados comemoraram a decisão da Suprema Corte vizinha, os conservadores, incluindo o próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, rechaçaram a mudança constitucional e prometeram não deixar que o mesmo aconteça no Brasil. “Que Deus olhe pelas vidas inocentes das crianças colombianas, agora sujeitas a serem ceifadas com anuência do Estado no ventre de suas mães até o 6º mês de gestação, sem a menor chance de defesa. No que depender de mim, lutarei até o fim para proteger a vida das nossas crianças”, disse o chefe do Executivo no Twitter.

O fato é que, independente dos atritos e declarações políticas, o debate sobre a descriminalização do aborto uma hora vai chegar ao Brasil. “O movimento em prol do aborto é mundial. Temos diversos países discutindo essa questão, alguns admitindo e se posicionando favoravelmente e outros contra. Nos próximos anos, a tendência é que a gente adote um posicionamento mais progressista, mesmo diante desse conservadorismo. Vai depender muito das eleições deste ano, não havendo uma ruptura na composição do Supremo, o assunto vai ser judicializado e a tendência é que o STF, por ser mais progressista, defina o posicionamento”, endossa Acacio Miranda da Silva Filho, advogado especialista em direito penal internacional. Ele explica que mesmo com uma tendência mundial, não há como o entendimento internacional decidir a questão no Brasil. “Podem surgir tratados, mas caberia adesão ao Brasil. Não pode ser imposto. Então, nesse contexto, o Brasil só acataria as decisões se aderisse aos acordos. Depende do Brasil mesmo”, acrescenta.

Aborto no Brasil

Atualmente, a interrupção voluntária da gravidez é permitida no Brasil em três situações: estupro, feto anencefálico ou risco de vida para a mãe. Mesmo assim, muitas brasileiras continuam recorrendo a abortos clandestinos – e inseguros –  em índices alarmantes. Segundo dados citados pela ONG Milhas Pela Vida das Mulheres, com base em informações oferecidas pelo Ministério da Saúde e pela Pesquisa Nacional do Aborto, do Instituto Anis, de 2015, cerca de 1 milhões de abortos acontecem anualmente no Brasil. Ao todo, são 2.740 procedimentos por dia, sendo dois por minuto. Por ser proibido, exceto nos três casos anteriormente citados, o abordo é majoritariamente feito em clínicas sem autorização e o resultado disso se reflete, entre outras coisas, em R$ 5 milhões gastos por ano pelo Sistema Único de Saúde (SUS) com as 250 mil hospitalizações por procedimentos inseguros. São R$ 13.700 por dia, R$570 por hora. Para as mulheres que recorrem aos procedimentos, a necessidade de buscar serviços clandestinos traz a morte. A casa dois dias, uma grávida morre em consequência de um aborto malsucedido.

Embora exista a Lei do Aborto, que criminaliza a interrupção da gravidez no Brasil, Jackie Anacleto afirma que, na prática, a legislação pouco funciona. Segundo ela, para que um caso chegue ao conhecimento das autoridades é preciso uma denúncia, o que é pouco comum. “Uma mulher ser criminalizada pela prática do aborto é muito raro, porque não chega ao conhecimento do Judiciário. Quando vemos [serem responsabilizadas], são clínicas clandestinas, são terceiros sendo criminalizados, mas não a mulher. Então, a lei não protege a mulher, não protege a vida uterina e as pessoas não são responsabilizadas. Hoje, a criminalização não é efetiva”, pontua. Ou seja, além de ir contra o direito das mulheres, refletir em gastos no SUS e colocar em risco a vida das gestantes, a criminalização do aborto no Brasil também é falha. “Quando se fala em criminalização do aborto é sempre no sentido da moral e da religião, não da saúde e vida da mulher que vai ter essa criança. Não se discute isso, não se quer resolver o problema, quer apenas julgar uma mulher que teve filho em situação de vulnerabilidade”, finaliza.

JovemPan

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