Em tempos de mensalão e sanguessugas, é difícil lembrar que política e poesia podem andar juntas. Mas podem. A prova está em “Zuzu Angel”, filme de Sérgio Rezende sobre a estilista morta na ditadura militar.
E quando se fala em cruzamento de política e poesia no Brasil, se fala também de Chico Buarque de Hollanda. O filme deixou o compositor em estado de comoção profunda, que o fez gravar uma versão dilacerante, definitiva, de “Angélica” (“Quem é esta mulher que canta sempre esse estribilho/ só queria embalar meu filho/ que mora na escuridão do mar”).
A nova versão da música composta por Chico para Zuzu encerra o filme como um soco. Numa interpretação mais lenta, e por incrível que pareça (após trinta anos da morte da estilista) mais sentida, Chico deu um fecho à obra de Sérgio Rezende que vai chapar os corações nas poltronas. Não dá para não chorar.
A viagem emocional do compositor ao reviver a história dramática de Zuzu o fez destrancar as lembranças da época. Em conversas com a equipe do filme, Chico recordou o grau de paranóia a que se chegou nos anos de chumbo. E contou a atitude insólita que se viu tomando por causa dessa paranóia.
Como se sabe, antes de morrer, Zuzu Angel entregou a Chico Buarque uma carta. Dizia nela que se alguma coisa lhe acontecesse, teria sido obra dos assassinos de seu filho, Stuart Angel Jones – vítima do regime militar, que agora perseguia a estilista, por sua cruzada para denunciar o desaparecimento do filho. Chico contou que as cópias da carta que distribuiu aos jornais (nunca publicadas) foram datilografadas por ele, uma por uma, numa velha Olivetti.
Depois de encaminhá-las, ele olhou para sua máquina de escrever e teve um mau pressentimento. Teve certeza de que os homens da repressão seriam capazes de identificar, pela tipologia da carta, a origem dela nas teclas da sua Olivetti. Precisava, então, livrar-se da máquina, mas qualquer lixeira no quarteirão também poderia incriminá-lo.
Chico Buarque entrou em seu carro e dirigiu por mais de uma hora até o topo da serra de Petrópolis. Estacionou no acostamento, onde a ribanceira lhe parecia mais íngreme, profunda e fechada pela mata. Retirou a máquina de escrever envolta numa sacola e arremessou-a, o mais rápido que pôde, no precipício. Essa pista nem a CIA conseguiria farejar.
“Zuzu Angel” tocou Chico Buarque porque é um filme com alma. Alma, no caso, significa capturar o espírito da época e transmiti-lo sem clichês ou exageros dramáticos. Patrícia Pillar e Sérgio Rezende viveram uma parceria histórica. Patrícia não é um retrato de Zuzu Angel. Ela encarna “uma” Zuzu Angel, a Zuzu que Sérgio imaginou, e que provavelmente serve muito mais à história da personagem original do que serviria uma reconstituição dela “ao pé da letra”.
Fora a cena inicial, em que a protagonista fala sozinha, ou pensa alto, para se apresentar ao espectador, a atriz domina o filme com uma interpretação antológica. Quem andava aborrecido com personagens históricos inverossímeis no cinema, como a novelesca Olga Benário de Camila Morgado, pode ir tranqüilo ver Patrícia Pillar dar sua aula de verdade.
Verdade temperada com poesia. A cena subaquática de Zuzu e seu filho Stuart, reunidos numa imagem delirante, quase surrealista, foi a forma mais genial que Sérgio Rezende poderia ter achado para mostrar a mãe embalando seu filho “na escuridão do mar” (o corpo de Stuart foi lançado no oceano e nunca reapareceu).
Depois, é o filho já morto que vem embalar a mãe, pegando-a no colo em outra cena alegórica, e aliviando-a das culpas e remorsos comuns a toda mãe que perde um filho. (Esta cena foi gravada dez vezes. Patrícia dizia que não estava conseguindo reencontrar a emoção que alcançara no ensaio. Sérgio rodou todos os takes pedidos pela atriz, e ao final da maratona lhe disse que ela estava perfeita desde o primeiro).
A água domina o mergulho poético de “Zuzu”. Sérgio Rezende não se preocupa tanto com a narrativa convencional da escalada da tortura contra Stuart e da cruzada da estilista em busca do paradeiro do filho. Prefere se concentrar em cenas como a de Zuzu recebendo a longa carta que a informa da morte de Stuart. A leitura em off da carta, com os detalhes da via crucis de seu filho, se funde com flashes da tortura bárbara sofrida por ele e com imagens da própria Zuzu submersa numa banheira, como se afogasse o seu desespero, ao saber que o corpo do filho sumiu no mar.
“Zuzu Angel” abre mão do didatismo político para se concentrar no drama humano de uma mãe. É, justamente por isso, um filme político.
Ao ver que não está numa aula de história do Brasil, o espectador baixa a guarda da emoção e sai do cinema com aquela sensação de “isto aconteceu no meu país”. É nessas horas que a arte pode provocar o despertar cívico. A esperança, mesmo torturada pelo cinismo, ainda é a última que morre.