Híbrido de linguagens, projeto apresenta três curtas com textos do premiado escritor irlandês Samuel Beckett que dão vozes às mulheres silenciadas pela sociedade
Com direção e tradução de Fábio Ferreira, o projeto “Vozes do Silêncio – Filme não Filme” reúne três obras curtas (“Não eu”, “Passos” e “Cadência”)do dramaturgo irlandês Samuel Beckett, Nobel de literatura, que dão vozes às mulheres silenciadas pela sociedade. Em cena, a também premiada atriz Carolina Virgüez dá corpo – e voz – a essas personagens por meio de solos que dialogam com diferentes linguagens artísticas. As apresentações de “Vozes do Silêncio” são gratuitas, de sexta a domingo, às 19h, até o dia 25, na plataforma Zoom, com retirada de ingressos pela Sympla (www.sympla.com.br/produtor/vozesdosilencio).
Gravado em um casarão da Glória, na Zona Sul no Rio de Janeiro, “Vozes do Silêncio” apresenta três curtas complementares que trazem referências do cinema experimental russo e da artesania teatral, com uma riqueza metafórica intensa. São cenas plásticas e poéticas que transcendem à dramaturgia, mas que conversam com ela numa narrativa oscilante em que as vozes femininas se desdobram criando sombras, reminiscências, deslocamentos ao ponto de questionarmos quem fala e de onde vêm essas vozes. “Brinco com as possibilidades de registrar o momento com câmera por meio de fusões, inversões de sentido e articulações entre trilha e movimento”, revela o diretor Fábio Ferreira, que começou sua carreira artística aos 16 anos como assistente do cineasta Silvio Tendler.
Escritos entre 1972 e 1980, os três textos formam uma trilogia conhecida internacionalmente como Whitelaw, em referência à atriz inglesa Bille Whitelaw, principal intérprete das obras de Beckett. “Embora formem uma trilogia, nenhuma produção se propôs a apresentar os três espetáculos no mesmo programa pela alta complexidade dos textos. Aqui no Brasil, já foram montados, mas separadamente”, conta Fábio Ferreira. “O texto beckettiano tem uma sonoridade própria. A Carolina Virgüez é minha parceira de longa data. É uma atriz completa que tem todas as qualidades técnicas para essa montagem, um desafio que requer virtuose vocal e intensidade física”, elogia.
Os três filmes — “Não eu“, “Passos” e “Cadência” — são dispositivos cênicos que dialogam entre si e revelam existências femininas marcadas pelo tempo, que resistem (ou não) à erosão do dia-a-dia, e que têm em comum a repetição dos hábitos, o cancelamento e outras violências. Estudioso da obra de Beckett, Fábio Ferreira conta que apesar de as protagonistas femininas terem demorado a aparecer nos textos do escritor irlandês, elas surgem de uma forma bastante contundente, interrogando os cancelamentos da presença (e da voz) da mulher na sociedade. “São personagens atuais até hoje, que têm suas vozes e corpos negados. A voz feminina tem sido calada ao longo de séculos na cultura ocidental. Pensar o que se perdeu com todo esse silenciamento e perceber como se deu e se dá até hoje, pode tornar mais claros os caminhos futuros”, propõe. “Digo que ‘Vozes do Silêncio’ é um falso monólogo porque traz muitas vozes. E elas não estão sozinhas. São vozes que ecoam e se multiplicam nas vozes de mãe e filha”, completa.
A parceria entre Fábio Ferreira e Carolina Virgüez começou em 2008, com a encenação de “Mistério Bufo”, de Vladimir Maiakovski, montado pela Companhia Bufomecânica, e seguiu em “Penso Ver o Que Escuto”, de Shakespeare, e “Two Roses for Richard III”, encenado na Inglaterra numa coprodução com a Royal Shakespeare Company. “Vozes do Silêncio” é o quarto projeto em que os dois trabalham juntos. “As três peças, em diferentes aspectos, têm uma relação com a maternidade. Há sempre duas mulheres se olhando, se projetando uma na outra. São mulheres que, de alguma maneira, ficaram presas a situações. Falamos sobre a ausência do ser, sobre negação, silenciamento, servidão, luto e imposição”, conta Carolina Virgüez.
A atriz conta que, para além da grandiosidade da obra, o texto de Beckett traz muitas rubricas técnicas, que são desafiantes, como a marcação de passos e o momento exato de uma ação ou fala. “Não Eu” é um jogo de palavras com 16 minutos, sem pausa, num fôlego só. São palavras que nem passam pelo fluxo do pensamento. É um lampejo, um fragmento de memória, de vidas e tempos sobrepostos e invertidos. Requer uma entrega, um estado de suspensão e um preparo vocal intenso”, revela Carolina. “Essas vozes não são de uma única mulher. São vozes de todas as mulheres. Eu trago também a minha voz. Eu entro nesse trabalho com meu corpo, com a memória dele. E eu também tenho memórias do que eu vivi, do que eu vi, escutei ou sinto, presencio e percebo. E essa memória do corpo vaza para a cena. A palavra é do Beckett, mas o corpo é meu e tudo que está impresso nele vaza para a cena”, completa a atriz.
A iluminação de Renato Machado, a trilha sonora original de Felipe Storino, o visagismo de Cleber de Oliveira e os figurinos de Luiza Marcier visam, de modos variados, a evidenciar e a reverberar essas vozes que foram esquecidas.
TRADUÇÃO
O interesse do diretor Fábio Ferreira pela obra de Samuel Beckett remonta dos anos 80, e lhe levou a vários escritos críticos, dissertação e tese de doutorado, além de traduções inéditas para o português. Foram dois anos no projeto de tradução de “Não eu“, “Passos” e “Cadência“. Em 2018, ele passou uma temporada de pesquisa em Copenhagen, na Dinamarca, onde encontrou biógrafos e pesquisadores de Beckett para seu projeto de tradução. A investigação se estendeu a Reading, na Inglaterra, cidade cuja universidade mantém os Arquivos Beckett, com os manuscritos, textos datilografados e provas organizadas por James Knowlson, principal biógrafo de Beckett e amigo pessoal do escritor.
“Fábio fez um trabalho artesanal na tradução. Ele me mandava os textos e depois me ligava, da Dinamarca, para verificar como o texto soava”, lembra Carolina Virgüez. “Existe uma diferença muito grande quando se traduz literatura e quando se traduz para o teatro. Fábio tem um apuro com a palavra, com a cadência musical do texto, com a palavra e com o silêncio”, elogia.
“Vozes do Silêncio – Filme não Filme” será lançado ainda este ano pela Editora Cobogó, com endosso de especialistas como o professor, poeta e tradutor Paulo Henriques Britto e Fábio de Souza Andrade, considerado o maior tradutor de Beckett do país.
OFICINA ‘SAMUEL BECKETT E A TÉCNICA DA PERFORMANCE’
Nos dias 6 e 8 de abril (das 16h às 17h30), Fábio Ferreira e Carolina Virgüez vão ministrar a oficina online “Samuel Beckett e a técnica da performance“, em que vão mapear os procedimentos de composição cênica, vocal e corporal abordados na construção de “Vozes do Silêncio”. Questões que impulsionaram o processo de trabalho — como a experiência do corpo em um espaço limitado, a importância da sonoridade nas peças de Beckett e as estratégias de criação durante o período de isolamento social — serão analisadas e compartilhadas com o público em dois encontros na plataforma Zoom. A oficina também abordará elementos característicos da poética beckettiana, como precisão, impulso e textura do movimento; pausas, silêncios, suspensões, velocidade e ruptura.
A oficina, gratuita, é voltada para artistas, estudantes e interessados em arte, em geral, a partir de 16 anos. Para participar, o interessado deve ser inscrever até as 23h59 de 3 de abril (sábado) em bit.ly/oficinaSBtecnicaperformativa e apresentar um breve currículo. Os 20 selecionados serão contatados entre os dias 4 e 5 deste mês.
CAROLINA VIRGÜEZ
Com vasta experiência em teatro, a atriz trabalhou com Bia Lessa, Luiz Arthur Nunes, Marco André Nunes (Aquela Cia), Gracindo Júnior, Eryk Rocha, Gabriela Carneiro da Cunha, Antônio Karnewale, Georgette Fadel, Yara Novaes, Adriano Guimarães, Pierre Astriè, Dácio Lima, Cláudio Baltar e Fábio Ferreira, entre outros. Junto à Cia BufoMecânica, participou em Stratford e Londres, na Royal Shakespeare Company, do espetáculo “Two roses for Richard”. Em cinema, trabalhou em Hollywood com Bill Condon no filme “Breaking dawn – Saga crepúsculo”. Entre seus mais recentes filmes estão “Fernando”, “Veneza” e “Casa flutuante”, produção portuguesa com estreia prevista para 2021. Em teatro recebeu os prêmios Molière (“Dois idiotas cada qual no seu barril”); Mambembe (“Cinderela chinesa”); Shell, Questão de Crítica e APTR (“Caranguejo overdrive”). Ainda como atriz, foi indicada aos prêmios Mambembe (“Petruska”), Shell (“Médico à força”), Questão de Crítica (“Penso ver o que escuto”), Coca-Cola (“Cinderela chinesa”).
FÁBIO FERREIRA
Doutor em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC Rio e pela Universidade de Copenhagen e bacharel em Teoria do Teatro pela UNIRIO, Fábio Ferreira é diretor teatral, dramaturgo, tradutor e professor universitário. Escreveu crítica teatral em publicações como o Jornal do Brasil (Caderno B) e as revistas Bravo!, Gesto e Questão de Crítica. É também professor de Artes Cênicas, Letras e Filosofia da PUC Rio. Criou os Festivais riocenacontemporânea e ArtCena: Processos de Criação. Diretor teatral desde 1991, com “Dorotéia, a farsa” (1991/92), de Nelson Rodrigues, “Traço obscuro” (2007) “O idiota – Primeiro dia” (2010), “A dona do fusca laranja” (2011). Junto com o diretor Claudio Baltar, criou a Cia Bufomecânica, com a qual desenvolveu pesquisas que resultaram nas encenações “Mosaico Maiakovski” (2008), “Mistério Bufo” (2009), “Penso ver o que escuto” e “Two roses for Richard III”.
FICHA TÉCNICA
Textos: Samuel Beckett
Tradução: Fábio Ferreira
Direção: Fábio Ferreira
Performance: Carolina Virgüez
Roteiro: Fabio Ferreira
Assistente de direção: Carolina Rocha
Cenografia: Fabio Ferreira
Iluminação: Renato Machado
Assistente de iluminação: Rodrigo Lopes
Visagismo: Cleber de Oliveira
Figurinista: Luiza Marcier
Assistente de figurino: Júlia Roliz
Trilha sonora: Felipe Storino
Participações Especiais:
Gerald Thomas – Contrabaixo
Paulo Passos – Clarone
Direção de movimento: Paulo Mantuano
Supervisão vocal: Jaqueline Priston
Fotografia e edição: André Monteiro
Assessoria de imprensa: Catharina Rocha
Social midia: Thiago Guarabyra
Projeto gráfico: Luiza Marcier
Administrativo e prestação de contas: Patrícia Basílio
Produção executiva: Ártemis e Alex Nunes
Direção de produção: Sérgio Saboya e Silvio Batistela
Realização: SESC