Mais alta corte brasileira expandiu seu poder com argumento de proteger a democracia. Mas há aqueles que se perguntam se o Tribunal agora representa uma ameaça.
O Supremo Tribunal Federal brasileiro foi iluminado com as cores da bandeira nacional em Brasília, a capital do país, no mês passado.
Por By Jack Nicas
Jack Nicas conversou com ministros do Supremo Tribunal Federal, com procuradores da justiça federal, juízes federais e juristas durante a apuração desta matéria. Ele reporta de Brasília.
Daniel Silveira, o policial que se tornou congressista da extrema-direita Brasileira, estava furioso. Ele acreditava que o Supremo Tribunal Federal brasileiro estava perseguindo conservadores e silenciando-os nas redes sociais, e quis tomar uma atitude a respeito.
Silveira sentou no seu sofá e começou a gravar: “Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra”, disse no seu discurso virulento contra os ministros do Supremo, os músculos se avolumando através de sua camiseta. Silveira postou o vídeo no YouTube em Fevereiro de 2021, completando, “e eu falo por aqui o que eu quiser”.
Um ministro do Supremo emitiu imediatamente a ordem de prisão contra ele. Um ano depois, 10 dos 11 juízes o condenaram e sentenciaram a quase nove anos de prisão por ameaçá-los.
Jair Bolsonaro, então presidente do Brasil, perdoou Silveira, mas o Supremo anulou o perdão. Hoje, Silveira ainda cumpre a sua sentença. Não há margem para recursos além do Supremo. O caso de Silveira é peça integrante de uma crise institucional que avança silenciosamente no país.
Nos últimos cinco anos, o Supremo tem expandido seus poderes para realizar uma campanha abrangente na defesa de instituições brasileiras de ataques, muitos destes online. Para a esquerda, a ofensiva ajudou a salvar a democracia brasileira. Já para a direita, tem feito do Tribunal uma ameaça à própria democracia.
Ambos os lados podem estar certos.
Daniel Silveira, um deputado brasileiro, foi condenado a quase nove anos de prisão por ameaças ao Supremo Tribunal Federal depois de publicar um vídeo no qual dizia imaginar os ministros sendo agredidos. Apoiadores de Jair Bolsonaro, ex-presidente de direita, durante um protesto realizado em setembro contra a Suprema Corte do país.
O Supremo começou sua campanha logo após Bolsonaro se tornar presidente em 2019, com um ato extremamente incomum: Se concedeu a autoridade para abrir uma investigação criminal dos ataques contra a Corte, chamada de Inquérito Fake News.
Esse ato levou a uma série de investigações sob a liderança de um único juiz, o ministro Alexandre de Moraes. As investigações miraram operadores da extrema direita que clamavam por um golpe militar depois que o ex-presidente Bolsonaro perdeu a presidência em 2022, ajudando a garantir a transferência de poder.
O ministro Alexandre de Moraes também assumiu novos poderes para ordenar operações policiais contra pessoas que apenas criticaram o Tribunal online; forçar veículos de imprensa a retirar publicações e ordenou oficiais da receita a parar de investigar um outro ministro do Supremo e a esposa.
O Tribunal também nomeou-o uma espécie de Xerife da internet brasileira. O ministro fez as empresas de tecnologia silenciarem centenas de pessoas nas redes sociais e bloqueou o X de Elon Musk por desobedecer a justiça. A maioria dos outros 10 ministros têm formalmente apoiado suas decisões.
Agora, dois anos depois do tumulto da última eleição e cinco anos desde que o Tribunal se concedeu os novos poderes, a Corte tem se mostrado relutante em abrir mão deles.
“Se não fosse esse inquérito, a democracia no Brasil tinha ruído,” disse o ministro Dias Toffoli, 56, que criou o Inquérito Fake News e nomeou o ministro Alexandre de Moraes como relator.
O presidente do Supremo, o ministro Luís Roberto Barroso, 66, disse que impor os padrões de outros países no Brasil seria injusto. Enquanto a constituição Estadunidense protege até mesmo o discurso de ódio sob amparo da Primeira Emenda, por exemplo, o Brasil não oferece essa proteção.
“Os países têm circunstâncias diferentes” disse o ministro Barroso, “E uma democracia jovem como a brasileira precisa se proteger de riscos reais.” Ele afirmou que acredita que “já há um término à vista” das investigações.
Os arquitetos de Brasília organizaram os prédios principais do Executivo, do Legislativo e do Judiciário de maneira equidistante para representar o equilíbrio entre os poderes. Em 2023, apoiadores de Bolsonaro invadiram os prédios.
Luís Roberto Barroso, o presidente do Supremo Tribunal Federal, em seu escritório no mês passado. “Uma democracia jovem como a brasileira precisa se proteger de riscos reais“, ele disse.
Imbuída de novos poderes, a Suprema Corte brasileira se tornou uma das altas cortes mais poderosas do planeta, segundo Tom Ginsburg, que monitora cortes ao redor do mundo e é professor de lei constitucional comparada na Universidade de Chicago.
“Mesmo que algumas de suas decisões possam ser boas e algumas possam fazer sentido, muitos veem esse alcance como realmente excessivo e que tem inibido a livre expressão no Brasil”, disse. “Em uma democracia, você precisa poder criticar todas as instituições de governo.”
A agressividade da Corte agora está atraindo atenção do mundo todo com a ajuda de Elon Musk.
Sob ordens do ministro Alexandre de Moraes, ao menos 340 contas de redes sociais foram bloqueadas por provedores desde 2020, acarretando a retirada de centenas de milhares de postagens de acordo com uma análise do New York Times de uma pequena parte de suas decisões que chegaram a público.
Em alguns casos, o Ministro disse que ele bloqueou as contas porque elas disseminavam discursos de ódio, ou ameaçavam instituições, e providenciou exemplos. Mas, para mais da metade das contas, o ministro disse que os motivos da remoção estão sob sigilo. O Supremo informou que as empresas de tecnologia podem solicitar esclarecimentos..
Essas determinações enfureceram a direita brasileira, e, recentemente, a Elon Musk. O bilionário se recusou a acatar as ordens. Em seguida, o Ministro Moraes bloqueou o X. A disputa pelo poder terminou com uma vitória clara: Musk voltou atrás e cumpriu as ordens. O Ministro Alexandre de Moraes suspendeu o bloqueio ao X semana passada.
Alexandre de Moraes, um juiz do Supremo Tribunal Federal, é o relator de investigações sobre o que a Corte considera um ataque às instituições brasileiras. Um escritório na sede modernista do Supremo Tribunal Federal, onde juízes, advogados e assessores lidam com mais de 100 mil casos por ano.
Em entrevistas com o New York Times, quatro altos membros da Procuradoria Geral da República descreveram as ações do Tribunal como uma abrangente tomada de poder, disseram que o Tribunal carece de uma instância para a prestação de contas por seu atos, e criticaram o fato que as investigações tem se arrastado por anos sem chegar a resoluções.
“Salvamos a democracia, não tem dúvida, acho que o Supremo teve um papel real nessa questão,” disse Ubiratan Cazetta, Procurador e presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República, “Mas o custo disso é que me preocupa”.
O caso de Daniel Silveira demonstra o cerne da crítica às ações mais recentes do Supremo: há momentos em que a Corte tem sido a vítima, investigador e juíz, tudo ao mesmo tempo. Os Ministros discordam, disseram que a vítima no caso é a democracia, e não eles, os ministros. (O advogado do Sr. Silveira disse que a condenação de seu cliente violou várias leis e sua imunidade legal como congressista.)
Alguns juristas disseram que o Supremo respondeu de forma adequada ao movimento Bolsonarista porque a Procuradoria Geral da República deixou de agir. Mas eles se preocupam diante da continuidade das ações do Tribunal uma vez que as ameaças se atenuaram.
“Tempos excepcionais exigem medidas excepcionais”, disse Thiago Amparo, respeitado advogado de direitos humanos que tem apoiado o Supremo. “Mas quando não há mais tempos excepcionais, não há mais necessidade de medidas excepcionais.”
Os brasileiros estão divididos. Em uma pesquisa de opinião da Pew Research Center desse ano, 47 por cento dos brasileiros respondeu que o sistema judiciário é uma influência ruim no país, e 45 por cento que é uma boa influência.
Diferentemente da Suprema Corte Estadunidense, que decide 100 a 150 questões de constitucionalidade por ano, o Tribunal é praticamente o seu próprio sistema judiciário. É uma corte constitucional, uma corte de recursos, e, por causa das novas investigações, cada vez mais uma corte criminal.
Sua sede modernista está lotada de juízes assistentes, advogados e assessores tramitando aproximadamente 100.000 casos por ano. Acima deles, televisões mostram seus chefes em deliberações transmitidas ao vivo, o que ajudou a fazer dos ministros celebridades nacionais que a maioria vê como intocáveis. Nomeados pelo presidente da república, eles terminam seus mandatos aos 75 anos.
Assessores do Supremo Tribunal Federal esperam o início de uma sessão com a presença dos 11 ministros da Corte.
Uma mulher caminha diante de uma propaganda do WhatsApp no Aeroporto de Brasília pedindo às pessoas para “verificarem os fatos”. O Supremo Tribunal Federal tem procurado combater agressivamente a desinformação online.
No começo de 2019, reportagens na imprensa sugeriram que a enorme operação anticorrupção Lava Jato estava começando a investigar alguns ministros, inclusive o presidente do Supremo na época, o ministro Dias Toffoli.
Ele repudiou veementemente matérias que alegavam que o Supremo estava tentando sufocar a investigação. “Atacar a cada um de nós já é um ataque a todos” o ministro disse a seus colegas na Corte em 2019. “A calúnia, a difamação, a injúria não serão admitidos”
No dia seguinte, o Ministro Toffoli abriu o Inquérito Fake News. (Ele usou o termo em inglês, já popularizado por Donald J. Trump.) Na sua decisão de uma página, afirmou que o Tribunal iria investigar “notícias fraudulentas (fake news), falsas comunicações de crimes, denunciações caluniosas, ameaças e demais infrações” que “atingem a honorabilidade e a segurança do Supremo Tribunal Federal, de seus membros e familiares.”
Na sua justificativa legal, o ministro Toffoli usou uma frase do regimento interno que dizia que era permitido investigar crimes cometidos contra ministros “na sede ou dependência do Tribunal”.
“Hoje o mundo é digital,” ele disse em uma entrevista recente. “Qualquer ataque, em qualquer lugar, à instituição é um ataque ao Supremo Tribunal Federal.”
De repente, o Supremo Tribunal Federal tinha poder para investigar praticamente qualquer crítica a si próprio, em qualquer lugar.
Em uma de suas primeiras ações à frente do inquérito, o ministro Moraes ordenou que a revista Crusoé retirasse do ar um artigo online que ligava o ministro Toffoli a um esquema de corrupção revelado pela Operação Lava Jato. O ministro Moraes chamou isso de “fake news”.
Quando a revista mais tarde produziu evidências mostrando que a reportagem era precisa, ele permitiu que fosse republicada.
Na mesma época, o ministro Moraes ordenou operações de busca e apreensão contra sete pessoas que criticaram o Tribunal em postagens online. Algumas chamaram o Tribunal de corrupto e exigiram a destituição dos ministros. A polícia entrou nas casas dos investigados, confiscando telefones e laptops.
Anos depois, nenhuma denúncia foi apresentada, mas bens apreendidos não foram devolvidos, segundo uma das pessoas alvo das buscas.
Nos anos seguintes, o escopo do Inquérito Fake News se ampliou e passou a focar em qualquer ataque às instituições. O ministro Moraes usou sua posição de relator para assumir o controle de pelo menos outros oito inquéritos similares, a maioria focada nas ações de Bolsonaro e seus apoiadores. Isso fez do Tribunal o principal alvo do bolsonarismo. Apoiadores furiosos de Bolsonaro ameaçaram os ministros online, gritaram com eles em público e rastrearam seus movimentos em particular.
Em um momento, em uma aparente tentativa de intimidação, Bolsonaro ordenou que jatos militares sobrevoassem a sede do Supremo Tribunal Federal tão baixo que quebrariam as janelas do prédio. Os militares se recusaram a atendê-lo.
Uma mulher distribui cartazes em apoio a Elon Musk, cuja plataforma X foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal depois que a empresa se recusou a cumprir com ordens da Corte. Membros das Forças Armadas em janeiro de 2023 removendo as sobras de um acampamento onde apoiadores de Bolsonaro pediam um golpe militar.
O Tribunal endureceu sua postura. Na corrida para a eleição de 2022, o ministro Moraes, que também atuava como chefe das eleições no país, ordenou que empresas de tecnologia retirassem contas ou postagens que, segundo ele, ameaçavam a integridade da votação, incluindo algumas de Bolsonaro.
Após a derrota de Bolsonaro, seus apoiadores bloquearam rodovias e acamparam em frente a bases do Exército, alegando fraude e exigindo que os militares anulassem os resultados da eleição. O momento preocupou muitos em uma nação que sofreu sob uma ditadura militar de 1964 a 1985. O ministro Moraes ordenou a remoção de mais contas que contestavam a votação ou apoiavam os protestos.
Há acusações de que ele foi atrás de uma organização de notícias que cobriu as alegações de fraude eleitoral. Em meio aos protestos eleitorais, um dos auxiliares do ministro Moraes ordenou que outro assessor do Tribunal encontrasse justificativa para tomar medidas contra a Oeste, um veículo de notícias conservador, e “todas essas revistas golpistas”, segundo mensagens de texto vazadas publicadas pela Folha de São Paulo, um dos principais jornais do Brasil.
O assessor do Tribunal respondeu que só conseguiu encontrar “publicações jornalísticas” que “não diziam nada” no site da Oeste, mostraram as mensagens. O auxiliar de Moraes respondeu: “Use sua criatividade, rs”. O assessor disse que “daria um jeito”.
Semanas depois, o YouTube bloqueou temporariamente a Oeste de exibir anúncios em seus vídeos, alegando que havia publicado “conteúdo prejudicial”, disse a Oeste. A revista depois afirmou que processou o YouTube e encontrou, durante o processo, uma ordem do ministro Moraes para bloquear a monetização da Oeste no YouTube. Uma porta-voz do STF negou que Moraes tenha emitido a ordem. O YouTube reverteu a ação desde então.
Uma semana após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2023, centenas de apoiadores de Bolsonaro invadiram as sedes dos poderes em Brasília, incluindo o Supremo Tribunal Federal, exigindo um golpe. Eles fracassaram, e o ministro Moraes relatou mais de 225 condenações desde então, algumas delas a 17 anos de prisão.
Danos à sede do Supremo Tribunal Federal causados por Bolsonaristas quando eles invadiram o edifício em janeiro de 2023. Ele também enfraqueceu Bolsonaro. O Tribunal Superior Eleitoral, liderado pelo ministro Moraes, decidiu que o ex-presidente não poderia concorrer nas próximas eleições porque tentou minar o voto de 2022.
O ministro Moraes também autorizou operações policiais contra Bolsonaro e muitos de seus assessores em três investigações separadas, incluindo acusações de que eles planejaram um golpe. A polícia confiscou o telefone e o passaporte de Bolsonaro.
Bolsonaro chamou as investigações de perseguição política.
Milhares de apoiadores de Bolsonaro protestaram contra o Tribunal nos últimos meses, pedindo o impeachment do ministro Moraes. Na semana passada, uma comissão do Congresso brasileiro votou para limitar os poderes do Tribunal. O projeto dificilmente se tornará lei.
Nas entrevistas, os ministros disseram que a democracia do Brasil continua sob séria ameaça, e criticá-los é um ataque aos seus esforços para protegê-la. “Nós estamos lidando com gente perigosa”, disse o ministro Barroso, presidente do Tribunal. “E é preciso não esquecer isso.”
Mas o que acontece se o Tribunal errar?
“Alguém deve ter o direito de errar por último”, disse ele. “Eu acho que nós não erramos, mas a última palavra é a do Supremo.”
Fonte: The New York Times – por Jack Nicas
Paulo Motoryn e Lis Moriconi contribuiram para a reportagem. Flávia Milhorance e Ana Ionova contribuiram para a pesquisa.