Mesmo com o futuro de 20 milhões de crianças e adolescentes filhos de casais separados em jogo, o Senado preferiu adiar a aprovação do projeto de lei que torna obrigatória e automática a guarda compartilhada. Na terça-feira 4, a casa optou por mandar o Projeto de Lei 117/2013 para discussão na Comissão de Assuntos Sociais (CAS), em vez de aprová-lo, mesmo tendo o texto, que está tramitando em regime de urgência, passado pelas comissões de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) e de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) e ter sido amplamente discutido pela sociedade. O argumento para essa nova interrupção é de que a proposta não contempla casos de violência doméstica. Na verdade, a guarda compartilhada já existe na legislação atual, mas um detalhe no texto, dizendo que esse modelo será instituído “sempre que possível”, faz com que o Judiciário, eminentemente conservador, ainda se atenha à guarda unilateral, de responsabilidade da mãe, sem levar em conta o quão importante é para o desenvolvimento do filho ter as duas figuras de referência presentes em sua vida, independentemente de estarem vivendo juntas ou não. Essa mudança na lei, que excluiria a condição de possibilidade e colocaria a guarda compartilhada automática, é o gesto necessário para que juízes deixem de se posicionar contrários à participação igualitária do pai e da mãe divorciados na vida da criança e coloque o País em sintonia com o que há de mais moderno e eficiente no mundo. Mas sua aprovação tem patinado no Congresso e frustra expectativas de pais que lutam pelo bem dos seus filhos.
Por ter seguido um caminho sem percalços tanto na Câmara quanto no Senado até ir para votação no plenário, o projeto de lei tinha a aprovação dada como certa. Mas no dia 29 de outubro um imbróglio começou a ser desenhado. O senador Humberto Costa (PT-PE) fez um requerimento a pedido do Ministério da Justiça para que o PL fosse encaminhado à Comissão de Assuntos Sociais (CAS) para mais uma análise. O pedido foi apresentado e imediatamente se tornou alvo de uma série de críticas. Educadores e especialistas em desenvolvimento infantil passaram a pressioná-lo para que retirasse a solicitação da pauta. Segundo Costa, havia muitos pontos do texto sobre os quais o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e entidades da sociedade civil divergiam. “Mas dada a imensa demanda social que recebi, resolvi retirar meu requerimento para que o projeto pudesse ser votado no plenário e deixar para que, posteriormente, pudéssemos sanar eventuais problemas com outros dispositivos”, diz Costa. Um discurso apenas retórico. Na prática, quando retirou o requerimento, o senador já havia articulado o próximo passo. Na terça-feira 4 o senador Romero Jucá (PMDB-RR) apresentou no Plenário uma emenda incluindo a questão da violência contra a criança e solicitou que fosse encaminhada à CAS. “Sou a favor da guarda compartilhada, mas o modelo só pode ser automático em situações seguras para a criança”, disse Jucá à ISTOÉ. “Se houver histórico de agressão, o juiz precisa levar isso em conta.” Mais uma questão apenas retórica. A legislação brasileira já prevê o que deve ser feito em caso de violência e, além de tudo, são exceções que devem ser tratadas como tal e não se tornar regra.
Segundo o senador, a comissão votará a emenda na quarta-feira 12 e, no mesmo dia, pedirá para levar o texto novamente para o plenário. Jucá afirma que o restante da proposta não será modificado. E é muito importante que isso aconteça, pois o texto do PL 117/13 é considerado um dos mais modernos sobre o tema no mundo. Em julho deste ano, durante um congresso que reuniu 110 especialistas de diversos países, que norteiam políticas públicas para governos do mundo inteiro, foram definidos seis consensos sobre a guarda compartilhada. Todos estão em sintonia com o PL 117/2013. Neles, se dizia que a guarda exclusiva não serve aos interesses e às necessidades das famílias e a custódia física conjunta é necessária para o bem-estar das crianças. Também salientava que a legislação deve incluir a guarda compartilhada, mesmo que um dos pais se oponha a ela. Inclusive nos casos de casais com alto grau de conflito.
Autor do PL, o deputado Arnaldo Faria de Sá (PTB-SP) salienta que o texto já passou pela avaliação de outras comissões e o atraso apenas compromete a vigência da nova legislação. “Agora, após aprovada no Senado, a proposta volta para votação na Câmara, sendo que a situação já poderia estar resolvida.” Entidades a favor da guarda compartilhada também se posicionaram contra a decisão de Jucá. “Não faz sentido retirar uma proposta de direito de família da pauta para incluir uma causa penal”, afirma Analdino Rodrigues Paulino Neto, presidente da Associação de Pais e Mães Separados (Apase). Ele ressalta que no Estatuto da Criança e do Adolescente há toda uma legislação para proteger os jovens, incluindo casos de violência. Além disso, o próprio código penal é que deve versar sobre agressões.
Com o atraso na aprovação do PL, a atual legislação continuará dando margem para decisões equivocadas do Judiciário, um sistema viciado que ainda se baseia na guarda unilateral como melhor decisão nos casos de litígio, que configuram 90% das separações. Embora a lei determine a guarda compartilhada, atualmente apenas 6% das decisões de guarda contemplam a divisão das responsabilidades pelos filhos entre pai e mãe, sendo que na grande maioria das vezes, cerca de 90%, a responsabilidade fica com a mulher. Especialistas concordam que separar os filhos de qualquer um dos dois genitores causa um abalo emocional que compromete o desenvolvimento.
“Quando um casal se une e decide ter filhos, ambos deveriam se lembrar que existe ex-marido e ex-mulher, mas não ex-filho. É preciso que a criança tenha essa garantia de crescer e se desenvolver na companhia dos dois pais”, afirma a psicóloga Rosely Sayão, maior especialista do País em educação de crianças e adolescentes, em entrevista recente à ISTOÉ. Ela explica que um dos grandes problemas nos divórcios atuais é que os filhos são vistos como bens, uma espécie de moeda de troca. Os pais, em meio a tanta tensão, muitas vezes nem se dão conta do mal que estão fazendo. “Mas acredito que, em um conflito, sempre é possível o diálogo.” O segredo, segundo Rosely, é ouvir o outro e ceder. Com o projeto de lei aprovado tornando a guarda compartilhada a regra, esse caminho do diálogo será facilitado. Pelo bem dos pais e, principalmente, dos filhos.
Foto: Sam Edwards Revista ISTOÉ