Putin considera país vizinho como zona de influência russa por laços históricos e culturais e tenta evitar adesão à organização liderada pelos Estados Unidos
A movimentação de tropas russas próximo à fronteira com a Ucrânia acendeu um sinal de alerta para os Estados Unidos, a União Europeia, e, claro, a própria Ucrânia. O temor é de que a Rússia invada o território ucraniano, em uma tentativa de afastar a influência europeia e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), aliança militar entre Estados Unidos, Canadá e países europeus, de uma nação que vê como dentro da sua zona de influência natural, pelos laços históricos e culturais entre os dois países. Com relações consistentes de ambos os lados, o Brasil provavelmente permanecerá neutro caso uma guerra se concretize.
O temor de um conflito não é novo e, para entendê-lo, é preciso conhecer a história conjunta dos dois países. Ucrânia e Rússia estiveram unidas no Império Russo e, posteriormente, na União Soviética. Quando o Estado socialista se desintegrou, a Rússia tentou manter sua influência sob as novas repúblicas que se formaram e não gostou de ver três delas (Estônia, Letônia e Lituânia) se juntarem à Otan, entidade criada durante a Guerra Fria para, em tese, ser uma aliança defensiva contra um possível ataque soviético. A entrada das três repúblicas representou a aproximação da organização do território russo, uma ameaça que cresceria caso a Ucrânia também aderisse. Por isso, a principal exigência do governo de Vladimir Putin para diminuir a tensão atual é de que a Otan prometa que a Ucrânia nunca será aceita como membro pleno, o que os Estados Unidos e demais países se recusam a consentir.
Putin se tornou presidente da Rússia em 2000 e, desde então, busca consolidar o país novamente como potência mundial e militar. Em 2008, deu um primeiro “recado” ao invadir a Geórgia para defender cidadãos etnicamente russos. Em 2014, a Ucrânia viu protestos massivos contra o então presidente Viktor Yanukovich quando este recusou um acordo com a União Europeia, o que elevou a tensão com a Rússia. Putin assumiu controle da península da Crimeia, território importante pela presença de um porto militar, com a justificativa de que a população local era etnicamente e linguisticamente russa. Além disso, uma guerra civil começou nos territórios de Donetsk e Luhansk, no leste da Ucrânia, região na fronteira entre os dois países. Os rebeldes proclamaram independência em relação ao governo de Kiev e formaram duas novas repúblicas, não reconhecidas internacionalmente, o que iniciou o conflito militar. A Ucrânia acusa a Rússia de fornecer apoio logístico aos rebeldes, o que Moscou nega.
Na crise atual, a Rússia movimentou cerca de 100 mil soldados para as proximidades da fronteira com a Ucrânia, além de tanques, artilharia e equipamentos de suporte. Tropas e tanques também teriam sido deslocados para exercícios militares em Belarus, nação aliada à Rússia, cuja fronteira com a Ucrânia fica a menos de 150 quilômetros da capital Kiev. Embora tenha a capacidade militar significativamente menor, os ucranianos poderiam receber apoio militar na forma de armas e treinamento de países europeus e dos Estados Unidos — o presidente norte-americano Joe Biden negou a possibilidade de enviar tropas, mas considera novas sanções econômicas (algumas já foram aplicadas após a tomada da Crimeia pela Rússia).
Os cálculos das potências
Segundo especialistas ouvidos pela Jovem Pan, Putin tem uma estratégia de longo prazo, da qual a Ucrânia é parte fundamental para garantir a segurança russa. “Ele tem falado sobre isso já há muito tempo, enxerga a Ucrânia em certa medida como parte da Rússia — é um país que tem um contingente grande de pessoas etnicamente russas, tem uma proximidade muito grande com a Rússia, era parte da União Soviética. Um dos objetivos do Putin em política externa é tentar desfazer o legado desse mundo pós-guerra fria. São questões com as quais, há muito tempo, a Rússia vem se mostrando incomodada, com a expansão da Otan. Ele [Putin] deu, desde 2008, alguns recados: primeiro a guerra da Geórgia, depois a anexação da Crimeia, em 2014, e agora a Ucrânia”, analisa Carlos Gustavo Poggio, doutor em estudos internacionais e professor da Faap.
Contudo, Putin ainda pesa as possibilidades de ação, levando em conta a economia, que poderia sofrer ainda mais com novas sanções. “A Rússia tem essa preocupação porque os EUA ameaçam retirá-la do sistema de transferências financeiras internacionais Swift, que é o código necessário para fazer transações internacionais. Isso poderia impactar diretamente para empresas russas que negociam com o restante do mundo. A própria circulação de moedas estrangeiras, como o dólar, o euro, a libra esterlina, seria bastante limitada”, comenta Roberto Uebel, doutor em estudos estratégicos internacionais e professor da ESPM-RS.
“É uma posição também de desafiar a hegemonia dos Estados Unidos. Em certa medida, eu entendo que ele está até mesmo testando a administração Joe Biden neste momento, tentando entender até onde o Biden está disposto a ir no caso de uma guerra com a Ucrânia e pesando os custos e benefícios. O Biden deixou claro que não teria uma resposta militar, então Putin está calculando que tipo de resposta econômica viria e se poderia absorver isso de alguma forma”, concorda Poggio.
Por outro lado, a administração de Joe Biden também tem diferentes assuntos a equilibrar, tanto para o público interno quanto para os aliados no exterior. “Biden deu declarações muito assertivas de que não tolerará um movimento maior de Putin ou da Rússia em relação à Ucrânia, justamente para consolidar uma imagem de recuperação da imagem internacional dos Estados Unidos. Durante os quatro anos de governo Trump, vimos os Estados Unidos mais isolado, não exercendo tanto o seu protagonismo, criando rusgas com seus parceiros tradicionais da União Europeia, então o governo Biden busca recuperar a imagem do país. Numa eventual invasão da Rússia à Ucrânia, os americanos teriam um argumento para exercer e projetar o seu poder. Só que a opinião pública nos EUA é extremamente dividida sobre a participação do país em conflitos internacionais”, avalia Uebel.
A questão da importância dos Estados Unidos como ator global seria ainda mais importante para a gestão Biden do que a situação ucraniana, comenta Poggio. “Para o Joe Biden e os Estados Unidos, é uma questão que vai além da Ucrânia e da Rússia, estamos falando da posição do país no sistema internacional. É um momento em que um aliado norte-americano democrático importante pode ser atacado pela Rússia. Como os EUA respondem? O que isso diz sobre o poderio americano? São questões muito mais amplas do que essa pontual da Ucrânia. Me parece que o Biden tem feito um esforço muito grande para conseguir o apoio dos europeus. Nesse sentido, o apoio mais importante seria o dos alemães, que são os maiores consumidores de gás natural russo, e essa me parece a chave para qualquer estratégia entre EUA e Europa”.
A Europa tem uma dependência em relação ao gás natural produzido pelos russos — ainda mais no inverno do hemisfério norte, quando o combustível é fundamental para o aquecimento dos domicílios e importante para o funcionamento das indústrias. Por conta disso, os líderes europeus têm sido mais comedidos. “A Europa age com muita cautela. Eu vejo os principais países do bloco, como França e Alemanha, com um discurso muito pragmático, condenatório às ações da Rússia, mas que vem evitando um confronto direto porque sabe da sua dependência energética”, diz Uebel. No entanto, os europeus ameaçam não iniciar a operação do gasoduto Nord Stream 2, concluído em setembro de 2021, como uma sanção econômica aos russos, e também já declararam que ajudariam a Ucrânia militarmente ou com suprimentos médicos.
Há o temor de que o conflito comece após uma operação de “false flag” (bandeira falsa, em tradução literal), ou seja, que um agente russo infiltrado em território ucraniano dispare e inicie um confronto, segundo veículos da imprensa norte-americana e europeia. Contudo, a imprensa russa também teme que os tiros sejam disparados do outro lado. “Entra numa questão da guerra de narrativas. A imprensa russa coloca que a Ucrânia, a qualquer momento, pode atacar o território russo, então depende muito de que lado nós estamos observando essas informações”, adverte Uebel.
E o Brasil?
Caso a guerra venha a se tornar real, os especialistas avaliam que o Brasil não deve tomar lado nenhum. “O Brasil deve manter-se distante e reiterar sua posição a favor da paz e do entendimento. A Rússia, com quem temos boas relações, é membro dos Brics e importante fornecedor de fertilizantes para o Brasil. Temos uma política externa equilibrada, ampla e universalista”, analisa Márcio Florêncio Nunes Cambraia, embaixador e especialista da Fundação da Liberdade Econômica. “O posicionamento adequado do Brasil é de condenar o conflito internacional, sem tomar um lado. Na eventualidade de ocorrer um confronto, o melhor posicionamento é aquele que ele historicamente adotou em sua diplomacia, do pragmatismo e do diálogo, de não-ingerência em questões externas, o que está estabelecido em nossa Constituição”, concorda Uebel. O Brasil é considerado pelos Estados Unidos como um aliado oficial extra-Otan, condição que facilita negociações econômicas, tecnológicas e de inteligência na área militar, mas não obriga o país a ajudar em caso de guerras.
O presidente Jair Bolsonaro fará uma visita oficial à Rússia em fevereiro, confirmada pelo próprio mandatário brasileiro. O gesto não deve ser entendido como um apoio à posição russa na tensão com a Ucrânia, mas, sim, como a continuação de uma relação amistosa entre os países. “Todos os presidentes do Brasil desde a redemocratização visitaram a Rússia. Não é uma política de relacionamento entre governos, mas sim entre Estados. Rússia e Brasil são grandes parceiros internacionais e fazem parte do Brics. Apesar de o grupo hoje não ter o protagonismo que tinha uma década atrás, ele ainda existe. Sabemos que Jair Bolsonaro e Putin têm uma relação próxima, de reconhecimento mútuo, de elogios. Eu não vejo como um gesto de apoio a Putin, mas como a continuação das boas relações que datam desde a independência do Brasil”, avalia Uebel.