Pode uma única sessão de fotos mudar a vida de uma modelo? E a de um fotógrafo? Se ela durar cinco dias (e quatro noites) sim. Uma sessão infinita em que a máquina fotográfica fosse cada vez menos máquina e mais olho. Vendo. Diminuindo a distância. E de repente a beleza e o olho de quem a mira se encontrariam em uma forma de delírio, folie à deux. A doçura devorando a máquina e não mais o contrário. Não é sempre (quase nunca) que isso acontece. Rebeca (a modelo) e Cisco (o fotógrafo) deixaram acontecer.
Uma vez o maquiador se lembrou de que as mulheres são lindas por baixo da maquiagem. E ele não afastou a ideia perigosa. Como ele não era apenas o maquiador, mas também diretor de arte e fotógrafo, quando ela acordou linda, com cabelo de princesa, ele não tocou nela – a não ser com o foco suave. E a bela se reviu. Gostou do que ele viu nela. Uma reeducação.
A armadilha não se fecha de uma única vez, com um clique. Ela vai cercando a vida da modelo de pequenas mediocridades, pequenos venenos, o olho errado. O olho gordo. O mau-olhado. O olho do predador e o olho do mistificador. E vem a ojeriza – la repugnancia del ojo. O reverso da beleza. Mas a modelo é vidente, além de bela – e ela vê os demônios que a veem. Por isso ela quer desistir, quer mudar de profissão para fugir deles. Pode uma única sessão de fotos mudar a vida de uma modelo? Pode, se de repente a doçura devorar o olhar, e não o contrário. E a última vez vira um recomeço.
A cúpula. Antigamente era uma garçonnière no centro de São Paulo. O estúdio do fotógrafo também é sua casa e um pequeno castelo, no topo do prédio de 1926 em que a arquitetura resistiu romanticamente, olhando o viaduto Santa Ifigênia de cima. Lá o fotógrafo também aconchega sua ilusão. Mas foi a bruxinha-modelo-princesa de Blumenau, nos seus 20 anos (um espírito antigo num corpo lindo), que viu um palácio onde os seus sonhos cabiam. E o fotógrafo viu o que ela via. E registrou, devolvendo beleza à beleza.
Se o fotógrafo fosse o espelho da beleza, e não o predador: uma reeducação. E a bela se viu. E ela gostou do que ele viu nela. E o fotógrafo (que além de maquiador e diretor de arte também é músico) então compôs uma canção, que diz assim: “Um adentra o outro/ e o céu é de nós dois/ tudo que faz um delírio, sim/ eu posso mais que me jogar/ não é um ponto/ sou mais ao vento/ nesse convés/ sou eu que invento/ folie à deux”.
E o véu do cinismo se rasgou para sempre e deixou passar a luz da manhã. E de outra manhã. E de outra.
REVISTA TRIP