O que parecia ser uma simples denúncia de exercício ilegal das técnicas radiológicas, a rigor, pode ser um grande crime em curso contra a humanidade. De acordo com apurações preliminares do Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (CONTER), 22 mulheres capixabas sofreram aborto após visitarem seus parentes encarcerados nos presídios de Vila Velha e Viana, no Espírito Santo, onde foram instalados equipamentos de inspeção de segurança (bodyscan) que emitem níveis consideráveis de radiação ionizante.
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De acordo com o relato de quatro vítimas, ao visitar seus parentes, as gestantes eram obrigadas pelos agentes penitenciários a passar pelo bodyscan. Como esses trabalhadores não têm conhecimento sobre leitura de imagens radiográficas, ao notar uma ‘massa estranha’ nos abdomes delas, eles desconfiavam que poderiam ter engolido drogas e pediam para que elas passassem novamente, por até cinco, seis vezes consecutivas. Cada passagem, uma dose de radiação acumulada.
O que é bodyscan? É um equipamento que utiliza radiação ionizante para escanerar corpos humanos nas inspeções de segurança, em presídios, aeroportos e órgãos públicos. Quanto melhor a resolução da imagem, maior o nível de RX que o bodyscan emite. A operação do equipamento só pode ser feita por profissionais legalmente habilitados nos termos da Lei n.º 7.394/85. |
Segundo a presidenta do CONTER Valdelice Teodoro, isso não poderia ser feito. “Até o terceiro mês, a gestante não pode ser submetida a exames radiológicos, pois o feto é muito sensível à radiação. Essa exposição pode levar à má formação do bebê ou à morte. Qualquer profissional da nossa área sabe disso”.
A denúncia chegou ao Conselho Regional de Técnicos em Radiologia do Espírito Santo (CRTR 13ª Região) em maio deste ano. “Eu soube que a Secretaria de Justiça tinha adquiridos esses equipamentos, então mandei que o fiscal fosse lá, ver se estava tudo em ordem. Não estava, havia uma série de irregularidades. Autuamos e notificamos os agentes, ao tempo em que esclarecemos todos os aspectos legais. Deixamos claro que gestantes e lactantes não poderiam ser submetidas àquele tipo de inspeção. Mas nada foi levado em consideração pelas autoridades competentes”, destaca o presidente Marcos Valério Neppel.
Quais são as normas? A legislação que disciplina o exercício profissional das técnicas radiológicas são as Leis n.º 1.234/50 e 7.394/85. Esses marcos regulatórios deixam claro qual é a formação mínima necessária para operar equipamentos emissores de radiação ionizante. Já os requisitos mínimos de proteção radiológica são definidos pela Portaria ANVISA n.º 453/98 e pela Convenção OIT 115, ratificada pelo Brasil ainda na década de 1960. Nos presídios de Vila Velha e Viena, no Espírito Santo, todo esse conjunto normativo é totalmente ignorado pelas autoridades competentes. |
De acordo com o fiscal do CRTR 13ª Região, Josiel de Oliveira, a falta de noção dos responsáveis sobre o uso da tecnologia é chocante. “Fui bem recebido pela diretora, ela se mostrou preocupada com as informações que levamos. Contudo, sequer sabia que aqueles equipamentos emitiam radiação”.
Com o passar do tempo, os próprios agentes penitenciários começaram a perceber que as preocupações do fiscal tinham fundamento. “Eu notei que várias mulheres vinham com barriguinha e, pouco tempo depois, voltavam sem nada. Comecei a perguntar e todas me respondiam que tinham perdido o bebê. Comecei a achar aquilo estranho e passei a anotar os dados delas. Agora, já começamos a perceber que tem agentes penitenciários apresentando sintomas também, como fortes dores de cabeça, ânsia de vômito e queda de cabelo”, relata um agente penitenciário que não quis se identificar.
As imagens do bodyscan são tão bem definidas que um médico radiologista conseguiria laudar a radiografia. O agente não consegue ler a imagem, pois não tem formação suficiente para discernir, sequer, entre um feto e o que seria um pacote de cocaína, por exemplo. Não obstante, eles passam cada mulher quatro, cinco, até seis vezes. Cada passagem, uma dose de radiação a mais vai se acumulando naquele organismo. “Não tenho provas de que existe relação entre uma coisa e outra. Mas, tantas mulheres abortando no mesmo sistema? Seria grosseiro dizer que é uma coincidência. O aparelho está em local inadequado, não há proteção radiológica, tanto para os operadores quanto para as pessoas que vão ser revistadas. Os trabalhadores também podem começar a apresentar problemas de saúde”, esclarece Josiel de Oliveira.
Com base nos dados da fiscalização e diante da tempestividade do assunto, o CRTR 13ª Região oficiou a Secretaria de Estado de Justiça, para esclarecer o que se passava e qual deveria ser a conduta a partir dali. “A secretaria foi omissa, demorou dois meses para nos responder. Quando o fez, foi simplesmente para nos desqualificar e dizer que não tínhamos autoridade para fazer aquelas objeções. Eles nos subestimaram”, considera o fiscal.
Mesmo depois de ser formalmente notificada, a diretora da penitenciária, Simone dos Santos Rodrigues, baixou uma portaria determinando que todos deveriam continuar a passar pelo bodyscan, inclusive grávidas e crianças, antes e depois da visita.
Os relatos das vítimas são estarrecedores. “Depois que passei pelo bodyscan, comecei a perder líquido, como se houvesse um pequeno furo na minha bolsa. Em três dias, perdi todo o líquido que tinha para o bebê sobreviver. Os médicos falavam que a maior chance era de infecção. Fiz todos os exames possíveis, não foi constatada nenhuma infecção. O bebê nasceu prematuro, com 24 semanas, e não resistiu, morreu. Registrei e enterrei meu filho ao mesmo tempo. Eu estava tentando engravidar há 3 anos, era meu sonho”, conta SHG, 33 anos de idade. “No dia 5 de abriu, eu fiz uma ultrassonografia com um dos melhores especialistas do Espírito Santo. Ele me disse que a gestação estava 100%. Ele usou esse termo: 100%! No dia 11 de abriu, eu perdi meu filho dessa forma inexplicável. O que causou aquela ruptura? Ninguém me explica. Até hoje eu choro.”
“Eu falei que estava grávida, mas a agente disse que se eu não tivesse o exame seria obrigada a passar. Ela não aceitou que eu fosse revistada de outra forma. Só de me olhar dava pra ver que eu estava grávida. Até aquele momento minha gravidez estava indo bem. Depois que passei pelo bodyscan três vezes consecutivas, comecei a sentir dor e ter sangramentos. Fui ao hospital e a médica me disse que eu estava abortando. Ela não soube me dizer o motivo”, afirma JNB, 39 anos, que perdeu o bebê na 12ª semana de gestação.
Sem se dar conta da gravidade do assunto, ao longo do primeiro semestre, os veículos de comunicação do Espírito Santo publicaram matérias noticiando a descoberta de gestações durante a revista nos presídios. Até aquele momento, ninguém compreendia a dimensão do problema e no que isso poderia dar. Noticiavam a descoberta de gestações como se fosse algo positivo.
Uma das nossas personagens não perdeu o bebê, pois teve coragem de se recusar. “Eu não passei, sabia que podia fazer mal. De lá para cá, não deixam eu fazer minha visita. Estou há meses sem ver meu namorado. Um dia, eles foram atrás de mim, estavam desconfiados, queriam me obrigar. Eu bati o pé, não passei. Ontem mesmo fiz o ultrassom, está tudo bem com meu filho”, conta a futura mamãe IAL, de apenas 13 anos de idade.
Os equipamentos instalados nos presídios de Vila Velha e Viena se chamam BS 16HR-DV, da marca Smiths Heimann.No manual, resta bem claro a área que ele irradia e todos os cuidados preventivos e de manutenção que devem ser tomados. Infelizmente, todas as recomendações são ignoradas pela Secretaria de Justiça do Espírito Santo.
No plano de trabalho sugerido pela Smiths Heimann, também existem uma série de requisitos que deveriam ser cumpridos, como a avaliação radiométrica do local, blindagem, recursos de segurança, assimilação de conceitos básicos de proteção radiológica, entre outros aspectos. Igualmente, todas essas recomendações não foram levadas em conta. Uma completa burla do necessário.
Além de expostas à radiação ionizante de forma amadora, essas mulheres relatam que são sumariamente humilhadas sempre que vão visitar seus parentes. “Era maltrada se me recusasse a passar pelo bodyscan, não deixavam entrar. Eu tinha que me submeter à exigência deles pra não ficar sem minha visita. Eles fazem o que querem, você não pode falar nada. Sou muito humilhada quando vou lá”, destaca JNB, que completa. “Esse filho era muito importante pra mim. Um filhinho agora era o que eu precisava, ficou um vazio. Sei que um filho não substitui outro, mas ia ser uma alegria para nossas vidas”.
“A gente entra em grupos de dez em dez. Por causa de um absorvente, eu vi pessoas serem obrigadas a passar até cinco vezes seguidas. Eu vi uma menina apresentar um Beta HCG, provando que estava grávida. Mesmo assim, ela foi obrigada a passar. Qualquer coisa que você tenta argumentar, eles coagem, “quem está de preto aqui?”,perguntam. É triste, me sinto impotente”, finaliza SHG.
“Os agentes não têm preocupação com a saúde e os direitos das pessoas, são desumanos. Eles assediam moralmente essas mulheres com o subterfúgio do desacato. Li uma reportagem que o estado que comprar mais 30 equipamentos como este. Cada um custa mais de 600 mil. É um grande negócio, que já sabemos onde pode dar”, finaliza o fiscal Josiel de Oliveira.
O Sistema CONTER/CRTRs não é contra a utilização do bodyscan nos presídios, apenas entende que os requisitos de segurança devem ser obedecidos e o aparelho seja operado por gente competente, que saiba identificar as pessoas que podem ou não ser submetidas àquele tipo de inspeção. “A mesma tecnologia vai ser utilizada nos aeroportos e estádios da Copa de 2014. Infelizmente, na maioria dos casos, os equipamentos serão instalados sem o cumprimento dos requisitos de segurança. Estatisticamente, podemos afirmar que problemas como esse vão se repetir. Lamentavelmente, as vítimas sequer entenderão o que está acontecendo. O panorama não é animador, nossos governos não observam suas próprias leis”, finaliza a presidenta do CONTER Valdelice Teodoro.
SOBRE O CONTER – O Conselho Nacional de Técnicos em Radiologia (CONTER) foi criado em 4 de junho de 1987 e tem a função de manter a inscrição das pessoas legalmente habilitadas, normatizar e fiscalizar o exercício das técnicas radiológicas no Brasil. O Sistema CONTER/CRTRs é composto pela entidade nacional e mais 19 Regionais, que cobrem todos os estados brasileiros. Atualmente, o Sistema CONTER/CRTRs diz respeito à aproximadamente de 93 mil profissionais das Técnicas Radiológicas em todo o território nacional.