As comissões permanentes da Assembléia Legislativa começaram a estudar novo projeto de lei que está sob o foco das Nações Unidas. De autoria do deputado republicano Sebastião Rezende, o projeto obriga os profissionais de saúde a notificar as autoridades policiais sempre que – em suas rotinas de atendimento médico a crianças e adolescentes – constatem sinais desses pacientes terem sido alvos de violência presumida ou comprovada.
Em 20 de novembro DE 2005, o então secretário-geral da Organização das Nações Unidas (ONU), Kofi Annan, lançou em Genebra (Suíça) um vigoroso estudo com quase 400 páginas contendo dados aterradores sobre toda espécie de violência contra a criança.
Em seu prefácio, Annan disse que a violência contra as crianças – que não respeita barreiras geográficas, de raça, classe, religião e cultura, e ocorre em casa, na escola, na rua, no trabalho ou em instituições de correção e prisões – pode ter conseqüências devastadoras. “Acima de tudo ela pode resultar em mortes precoces”, disse o ex-secretário.
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 53 mil crianças foram assassinadas em 2002 no mundo inteiro. “O relatório se tornou peça fundamental no imenso esforço a ser desenvolvido nos próximos anos contra a prática generalizada da violência contra a criança e o nosso trabalho também segue esse princípio”, lembrou Rezende.
O relatório citado pelo parlamentar tem a assinatura de um brasileiro – o sociólogo Paulo Sérgio Pinheiro. Professor titular de ciência política aposentado da Universidade de São Paulo (USP) e professor visitante de Relações Internacionais no Instituto de Estudos Internacionais da Universidade Brown (EUA), ele foi nomeado ‘expert’ independente das Nações Unidas para preparar esse estudo.
“O fruto desse belo trabalho – como não poderia deixar de ser – se transformou em um forte instrumento de mudança no quadro intolerável da violência mundial contra as crianças”, defendeu Sebastião Rezende.
Seu projeto explica que a violência contra a criança e o adolescente que resultar em morte, lesão corporal, sofrimento físico, sexual e psicológico será caracterizada pela ação ou omissão do agente. “A aplicabilidade do disposto neste projeto não excluirá a aplicação de outras medidas de proteção e de preservação dos direitos da criança e do adolescente”, diz ainda o documento.
Ele acrescenta que a comunicação obrigatória às autoridades policiais deverá ser feita em formulário próprio, devidamente atestado por profissional dotado de competência técnica e profissão regulamentada pelos órgãos públicos.
“Relatório da OMS – Organização Mundial de Saúde – apresentado em Assembléia Geral, em 2002, recomenda que seja tomado um amplo leque de medidas para prevenir e responder à violência contra as crianças em todos os locais e ambientes em que ela ocorrer. A lastimável conjuntura de violência que contumazmente é dirigida às nossas crianças e adolescentes é motivo de grande preocupação para o poder público e a sociedade civil, e precisa ser combatida com veemência”, justifica Rezende no projeto.
Ele recordou que o Artigo 70 do Estatuto da Criança e do Adolescente estabelece que “é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaças dos direitos da criança e adolescentes”. Ainda nesse mesmo sentido, o Artigo 4º do ECA estabelece ser “dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar – com absoluta prioridade – a efetivação dos direitos previstos no Estatuto”.
“A maioria dos casos de violência continua escondida e, por esse motivo, os números ficam muito abaixo da dimensão do problema”, prosseguiu o republicano. Seu projeto está na Comissão Permanente de Seguranças Pública e Comunitária, onde deu entrada na última terça-feira (22).
O Estudo da ONU – Conclusões
O estudo enfocou a natureza e a extensão da violência contra as crianças em cinco contextos: 1) em casa e na família; 2) na escola e no âmbito educativo; 3) em outras instituições como orfanatos e instituições para crianças em conflito com a lei, entre outros; 4) em situações de trabalho ; e 5) na comunidade e nas ruas.
Ele conclui que a violência contra as crianças acontece “em qualquer lugar, em todos os países e sociedades, e em todos os grupos sociais”. A violência extrema contra crianças – diz, o material – pode ser notícia de destaque nos meios de comunicação, mas as crianças dizem que os pequenos atos de violência e abusos diários também as magoam, desgastando a sua auto-estima, o seu bem-estar e a sua confiança nos outros.
Embora alguma violência surja de forma inesperada e isolada, a maioria dos atos de violência contra as crianças são praticados por pessoas conhecidas e nas quais deviam poder confiar: o pai ou a mãe, namorado ou namorada, marido, mulher ou companheiro, colegas de escola, professores e empregadores.
Muitos desses atos de violência contra as crianças permanecem escondidos: muitas das crianças que são vítimas de violência e as que dela são testemunhas ficam caladas por medo de represálias e por causa do estigma que a violência acarreta para a vítima e para quem a pratica.
O relatório aponta mais: “muitas pessoas – incluindo as crianças – aceitam a violência como parte inevitável da vida. Freqüentemente, as crianças que foram vítimas de violência ou as que sabem da sua ocorrência se calam porque não existem meios seguros ou de confiança para denunciar a violência ou obter ajuda.
A EXTENSÃO DO PROBLEMA – Em todo o mundo, a falta de dados sobre a violência contra as crianças é crônica, o que impede ou compromete a compreensão do problema e que se tomem medidas. Por isso, os números disponíveis ficam muito aquém da dimensão do problema.
CRIANÇAS EM RISCO – Todas as crianças estão potencialmente em risco de ser vítimas de violência, porém o risco de violência física é maior para as crianças do sexo masculino. O perigo de violência sexual, negligência e prostituição forçada é maior para as do sexo feminino. Segundo importante estudo que abrangeu diversos países, em alguns deles cerca de 21% das mulheres relataram ter sido vítimas de abuso sexual antes dos 15 anos de idade.
O Estudo da ONU – Recomendações
O estudo faz recomendações para cada um dos cinco contextos nos quais centrou sua análise. E inclui também algumas recomendações de carácter geral:
1. Em todos os países deve ser definida uma estratégia, uma política ou um plano de ação nacional para combater a violência contra as crianças, com objetivos e prazos realistas, integrado nos processos de planejamento nacionais, e desenvolvido e coordenado por um órgão com capacidade para congregar diversos sectores.
2. São necessárias leis e políticas que proíbam todas as formas de violência contra as crianças em todos os contextos. Nenhuma pessoa com idade inferior a 18 anos deve ser submetida à pena de morte ou a uma sentença de prisão perpétua sem a possibilidade de ser libertada.
3. Deve ser dada prioridade à prevenção da violência, combatendo as causas que lhe estão subjacentes.
4. São necessárias medidas para mudar atitudes de condescendência, aceitação ou incentivo de qualquer forma de violência contra as crianças, incluindo estereótipos relacionados com o gênero e a discriminação, a aceitação de castigos corporais e de práticas tradicionais nefastas.
5. É necessário que as pessoas que trabalham com crianças tenham preparação adequada e recebam formação contínua para que estejam aptas a prevenir, detectar e responder a situações de violência contra crianças.
6. Deve ser garantido o acesso a serviços de saúde e sociais sensíveis às necessidades das crianças, de qualidade e com custos comportáveis, bem como assistência legal independente às crianças e famílias que foram vítimas de violência.
7. Envolver ativamente as crianças e respeitar as suas opiniões em todos os aspectos relativos à prevenção, resposta e avaliação da violência contra elas praticada.
8. Devem ser criados mecanismos confiáveis, confidenciais, acessíveis e bem divulgados para que as crianças, os seus representantes ou outras pessoas possam reportar os casos de violência.
9. Maior responsabilização dos que cometem atos de violência contra as crianças.
10. Devem ser definidos e postos em prática políticas e programas numa perspectiva de gênero, ou seja, tendo em conta os diferentes riscos que as crianças correm no que diz respeito à violência.
11. É necessário melhorar o levantamento de dados e os sistemas de informação para que seja possível identificar as crianças em risco, definir políticas e programas, e acompanhar e medir os progressos.
12. Ratificar e aplicar todos os tratados e obrigações internacionais relevantes.
O Estudo faz também recomendações específicas quanto à sua aplicação e seguimento:
1) Em âmbito nacional, por exemplo, é recomendada a criação de uma entidade que represente as crianças em todas as instâncias; e
2) Em âmbito internacional, o estudo recomenda a nomeação de um “Representante Especial do Secretário-Geral” (da ONU) para a violência contra as crianças, com um mandato inicial de quatro anos. A missão dele será defender a causa ao mais alto nível, promovendo a prevenção e eliminação de todos os tipos de violência contra as crianças, e incentivando as cooperações regional e internacional – mobilizada pelo estudo – e garantir a continuidade das suas recomendações.