A mídia voltou ao assunto. Querem barrar a candidatura de políticos processados, os chamados “ficha suja”. Não desistem. Parece até mantra, se repetir com insistência quem sabe dá certo. O caso, porém, não é assim tão simples. Uma coisa é o que queremos e outra, bem diferente, o que podemos, dentro da lei. A Constituição Federal não permite discriminar este ou aquele, somente por suspeitas, sejam elas fundadas ou não. Existe, e deve ser respeitado, o princípio da presunção da inocência: uma pessoa só se presume culpada após condenação transitada em julgado (quando não cabe mais recursos). Até lá, por mais processada, ou mesmo presumivelmente culpada, que seja, não se lhe pode privar dos seus direitos como cidadão. É o que diz a Constituição.
Em 2008 o STF julgou uma ação em que a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros) pedia que os juízes eleitorais analisassem a vida pregressa dos candidatos para barrar registros de candidatura, e decidiu, por 9 votos a 2, rejeitar a ação. É uma decisão que tem efeito vinculante, ou seja, deverá ser seguida pelas instâncias inferiores.
Segundo o ministro Cesar Peluso, “uma das conseqüências mais graves da decisão favorável seria trocar um critério objetivo da lei (trânsito em julgado, ou seja, a última instância) por critérios subjetivos de cada juiz eleitoral”. Vale dizer, continua Peluso: “um juiz eleitoral se põe (nesse caso) na condição de déspota. Não se trata de um juízo criminal ao qual estão os processos suspensos, e que o juiz tem acesso, mas um juízo que não tem acesso aos autos, julgando o que lhe aparenta a existência do processo”.
Naquela ocasião, o ministro Lewandowski trouxe um dado interessante: segundo números do STF cerca de 28,5% dos recursos criminais que chegaram à última instância foram providos, ou seja, as decisões anteriores foram alteradas. Observem que mesmo os indivíduos condenados em primeiro e segundo grau, foram depois inocentados pela Corte maior. “Seriam mais de ¼ de candidatos barrados injustamente”, completa Lewandoswsky. “Se considerarmos os habeas corpus concedidos, o número é bem mais expressivo”, informou na mesma ocasião o presidente do STF, ministro Gilmar Mendes.
Por outro lado, o argumento daqueles que defendem a Lei de Inelegibilidade, que pretende proibir candidatos com ficha suja, baseia-se no fato de que o cidadão, ao candidatar, se propõe ser representante da coletividade e, portanto deve ter sua vida pregressa observada. Para esse grupo, a presunção de inocência, vale para o cidadão como indivíduo, mas a partir do momento em que ele se propõe a ser representante da sociedade, ele assume um caráter coletivo, e, como tal, aquelas garantias passam a ser relativas, e não absolutas. Deve haver probidade e moralidade no mandato, e isso deve ser levado em consideração na hora da concessão do registro. Para Carlos Ayres Brito, ministro do STF, “a incidência de trânsito em julgado é para proteger pessoas, enquanto que a norma (parágrafo 9°, do artigo 14 da Constituição) é para proteger valores, não indivíduos? E que valores protege? A probidade administrativa, a moralidade”. Carlos Brito ensina, ainda: “candidatura é candura, é limpeza, é depuração moral e ética. A Constituição não mudou o significado da palavra. O candidato deve ter no mínimo ética”.
Na mesma direção manifestou o ministro Joaquim Barbosa, no mesmo julgamento, para quem não existem direitos fundamentais de caráter absoluto, e que o exercício político por pessoas ímprobas repercutem de maneira negativa no próprio sistema representativo como um todo. “É a própria democracia que se veria diminuída e deslegitimada”, afirmou.
O assunto é, no mínimo, polêmico e apaixonante. Nós, como cidadãos, gostaríamos de ser representados por pessoas éticas, idôneas, probas, da mesma forma que gostaríamos de ser julgados, por juízes honestos, médicos éticos, advogados responsáveis, etc.. Seria o ideal, mas é desejar a perfeição numa sociedade imperfeita. Quem nunca ouviu falar de magistrados desonestos, ou não tão honestos assim? Basta verificar quantos processos existem nas Corregedorias dos Tribunais ou mesmo no CNJ, tratando do assunto, ou quantos já foram aposentados prematuramente. Quem, também, não ouviu falar de médicos aéticos, às vezes beirando o desumano, que não cumprem o juramento de Hipócrates? Igualmente, vamos verificar nos CRM’s, a quantidade médicos sendo julgados pelos Conselhos Éticos dessas entidades. Da mesma forma, pesquisem junto às OAB’s para constatar a quantidade de advogados que respondem processos por condutas inapropriadas, para a profissão. E isso vale para qualquer profissão, inclusive a dos jornalistas.
Existem em todos os segmentos sociais, pessoas honestas e pessoas mais ou menos honestas (como se a honestidade permitisse elasticidade), inclusive entre os políticos. A diferença é que naquelas, como em quaisquer outras, o julgamento dos processos que envolvem assuntos dessa natureza, são quase sempre feitos a portas fechadas, pelos seus pares, com todas as mazelas que ensejam a identidade entre o julgador e o julgado. O político não. O político é julgado às escancaras, diariamente, pela mídia, quase sempre sem imparcialidade, e de tempos em tempos, pelos eleitores. Este sim, julgamento imparcial e implacável. No dizer de José Antonio Toffoli, Advogado Geral da União, “a banca examinadora do candidato é o colégio eleitoral e não o Poder Judiciário”.
Mas quem é o político? É um cidadão como outro qualquer, saído do seio da sociedade. Por exemplo: quem é Marina da Silva? Você quer gente mais gente do que Marina da Silva? Ou Benedita da Silva? Ou Lula da Silva? Ou Heloísa Helena? Apenas para citar os mais populares. O Congresso Nacional é a representação da sociedade. Tal e qual existem os honestos e os desonestos, na mesma proporção. Se quisermos melhorar o nível dos representantes, deve-se melhorar o nível dos representados.
Cada político tem sua história de vida, tem suas idiossincrasias. Não se pode julgar o político como gênero, pode-se, e deve-se, julgá-lo como espécie, ou seja, a cada um, o julgamento que lhe couber. Ao generalizar estaremos contribuindo para afastar da lide política os homens de bem, que ficarão com vergonha de fazer parte do grupo, restando a responsabilidade da representação, apenas aos maus, aos desonestos, aos antiéticos. E o pior é que as leis aprovadas por esses deverão ser cumpridas por todos. Os bons e os maus.
Eu creio que a imprensa presta um grande serviço à sociedade quando denuncia os desvios dos agentes políticos. Mas ela é muito mais implacável e sensacionalista quando se trata do político. Até parece a Geni, pode jogar bosta à vontade. Dá ibope. No fundo, o denuncismo generalizado, ao intentar prestar um serviço ao eleitor, pode estar prestando um desserviço à democracia.
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Por Waldir Antonio Serafim da Silva