sábado, 23/11/2024
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Pobreza não impede Ruanda de universalizar planos de saúde

A maternidade do centro de saúde do distrito de Mayange não é nada pomposa.

Não tem água corrente e a sala de parto não passa de dois bancos acolchoados com estribos.

Mas a tinta azul nas paredes é razoavelmente fresca, e as camas da sala de trabalho de parto possuem mosquiteiros.

No interior, três gerações da família Yankulije relaxam em uma cama: Rachel, de 53 anos, sua filha Chantal Mujawimana, de 22, e o bebê de Chantal, ainda novo demais para ter nome.
O pequeno príncipe é o primeiro de sua linhagem a nascer numa clínica, e não num chão de terra batida. Mas ele não é o primeiro com plano de saúde. Sua mãe e sua avó possuem um, o que explica o fato de ele ter nascido aqui.

Ruanda já tem um seguro-saúde nacional há 11 anos; 92% das pessoas do país estão cobertas, e as taxas são de dois dólares por ano.

Sunny Ntayomba, escritor editorial para o “New Times”, um jornal da capital, Kigali, está ciente do paradoxo: seu país, um dos mais pobres do mundo, proporciona seguro a mais de seus cidadãos do que os países mais ricos.

Ele conheceu uma estudante universitária norte-americana de passagem no ano passado, e achou “um absurdo, ridículo que eu tenha seguro-saúde e ela não”, explicou ele, acrescentando: “E se ela ficasse doente, seus pais poderiam ir à falência. O mais triste foi a forma com que ela encolheu os ombros e simplesmente disse esperar não ficar doente”.

A cobertura de Ruanda não é mais pomposa que a maternidade em Mayange. Mas ela cobre o básico. As causas de morte mais comuns – diarreia, pneumonia, malária, subnutrição, cortes infeccionados – são tratadas.

Os centros de saúde locais geralmente possuem todos os medicamentos da lista oficial de remédios essenciais da Organização Mundial de Saúde (quase todos são cópias genéricas de remédios de marca), além de laboratórios aptos a realizar análises rotineiras de sangue e urina, junto a exames de tuberculose e malária.

Rachel Mujawimana deu à luz com uma enfermeira presente, aumentando amplamente as chances de sobrevivência para ela e seu bebê. Caso houvesse complicações, ela poderia ser levada de ambulância a um hospital do distrito com um médico.

“Antigamente, vínhamos aqui apenas quando a mãe tinha problemas”, disse sua mãe. “Hoje, o funcionário de saúde da vila ordena que você não tenha seu filho em casa”.

Desde que foi criado o seguro, conhecido como saúde compartilhada, a expectativa média de vida subiu de 48 para 52 anos, apesar da contínua epidemia de Aids, segundo a Dra. Agnes Binagwaho, secretária permanente do Ministério da Saúde de Ruanda. As mortes no parto e por malária decaíram agudamente, ela acrescentou.

Obviamente, muitas coisas que são rotineiras nos Estados Unidos, como exames de ressonância magnética e diálises, basicamente não são disponibilizadas. Câncer, derrames e ataques cardíacos muitas vezes são uma sentença de morte. O país todo, com uma população de 9,7 milhões, possui um neurocirurgião e três cardiologistas. Em comparação, a cidade de Nova York tem 8 milhões de pessoas; num torneio nacional de beisebol para neurocirurgiões no Central Park, há 10 dias, os hospitais locais conseguiram reunir cinco equipes.

Em outra comparação com os EUA, a obesidade e suas complicações médicas são quase um assunto proibido. Visitantes em Ruanda ficam rapidamente estarrecidos com a magreza da população nas ruas. E isso não ocorre necessariamente por subnutrição; mesmo o presidente, Paul Kagame, um incomparável asceta, é espectral.

Cirurgias gerais são realizadas, mas a espera pode chegar a semanas. Alguns pacientes sortudos, que precisam de cirurgias avançadas, podem ser tratados por equipes de médicos visitantes dos Estados Unidos, Cuba, Austrália ou qualquer outro lugar, mas esses médicos nem sempre estão por perto. Ocasionalmente, o Ministério da Saúde paga a ida de algum paciente até o Quênia, a África do Sul ou até a Índia, para tratamento.

Com um racionamento tão completo, como pode um país oferecer tanto por apenas 2 dólares anuais?

A resposta é: não pode. Não sem ajuda externa.

A Partners in Health, uma organização de caridade de Boston que administra dois hospitais rurais e uma rede de clínicas menores em Ruanda, declarou que seus próprios custos foram de US$ 28 anuais por pessoa, nas áreas que atua. Eles estimam que o atendimento governamental, ainda mais simples, custe entre 10 e 20 dólares.

De acordo com um estudo recentemente publicado na “Tropical Medicine & International Health”, os gastos totais de saúde em Ruanda atingem cerca de US$ 307 milhões por ano, e cerca de 53% desse valor vem de doadores estrangeiros, principalmente dos Estados Unidos. Um grande doador é o Fundo Global Contra a Aids, Tuberculose e Malária, que vem experimentando formas de apoiar sistemas completos de saúde – em vez de simplesmente tratar as três doenças em seu nome. O fundo paga as mensalidades para 800 mil ruandeses oficialmente classificados “pobres entre os pobres”.

Num país de agricultores pobres, os oficialmente pobres são decididos por conselhos da vila. Eles consideram bens como terras, cabras, bicicletas e rádios, e determinam se uma cabana possui um telhado de lata ou apenas palha.

“As pessoas conhecem os vizinhos por aqui”, disse Felicien Rwagasore, coordenadora de pacientes na clínica Mayange. “Eles não cometem erros”.

Fazer todo ruandês pagar algo faz parte do ambicioso plano de Kagame, de levar seu povo numa direção de maior autoconfiança e, com sorte, maior prosperidade. O país foi chamado de “Cingapura africana”. Aqui, as ruas são limpas e há poucos crimes, e todo mês as pessoas fazem um dia de serviço comunitário, como plantar árvores. A iniciativa privada é estimulada, e Kagame tem sido incansável em punir autoridades corruptas. Em nome de conter observações que possam reviver o ódio que causou o genocídio de 1994, seus críticos dizem, ele também suprime as dissidências políticas normais.

Um obstáculo mais prático para criar um sistema de seguro-saúde, entretanto, é que a maior parte dos pobres do mundo, inclusive os de Ruanda, resiste à impensável ideia de pagar antecipadamente por algo de que podem nunca usufruir.

“Se o povo paga os US$ 2 e não fica doente o ano todo, eles algumas vezes querem seu dinheiro de volta”, disse Anja Fischer, conselheira do ministério da saúde do GTZ, a agência humanitária semi-independente do governo alemão.

Os pagamentos cooperados (quando o paciente paga uma parte de cada tratamento) também podem ser devastadores. Até mesmo cinco dólares por uma cesariana pode ser caro demais para um povo tão miserável quanto Yankulijes, que vivem plantando feijões e batatas doces, e usam roupas norte-americanas de segunda-mão (a camiseta de Yankulije dizia “Wolverines Football”).

Muitos vivem do escambo e não conseguiriam reunir 2 dólares em moedas, disse o Dr. Damas Dukundane, que trabalha numa área pobre rural. Como o governo só aceita dinheiro, disse ele, seus pacientes algumas vezes vão a curandeiros tradicionais – que podem ser charlatões perigosos, mas aceitam cabras ou galinhas.

Como resultado de todos esses fatores, Ruanda é uma colagem de pequenas clínicas, algumas mais ricas ou mais bem administradas que outras. A de Mayange, por exemplo, recebe doações e diretrizes do Projeto Access, fundado por Josh N. Ruxin, professor de saúde pública de Columbia que não mora em Kigali.

Por exemplo, o computador que imprime os cartões de seguros possui uma webcam. Anteriormente, segundo Ruxin, para seguros custando US$ 2, os aldeões tinham de trazer fotografias que haviam lhes custado um dólar ou mais.

Um claro exemplo de como o sistema sobrecarrega os pobres, segundo ele, é o fato de que os ruandeses mais ricos pagam os mesmos US$ 2 que os pobres rurais.

“É um absurdo que minha mãe pague o mesmo que a mulher que limpa sua casa”, afirmou Binagwaho. “Essa lei está sendo alterada”.

Ainda assim, segundo Binagwaho, Ruanda pode oferecer aos Estados Unidos uma lição sobre seguro-saúde: “Solidariedade – não é possível se sentir feliz como sociedade se você não se organizar de maneira que o povo não morra de pobreza”.

Donald G. McNeil Jr.
Do New York Times, em Mayange, Ruanda
G1

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Parmenas Alt
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