Especialistas alertam para risco de o próximo feriado prolongado levar o Brasil a ter problemas parecidos com o dos EUA, que tem o número mais alto de internações desde o início da pandemia
Após meses de queda nas internações por causa da Covid-19 no Brasil, os números voltaram a aumentar no início de 2022 com a chegada da variante Ômicron ao país. Mais transmissível, a cepa tem causado recordes de novos casos no Brasil, assim como fez em outros países, mas isso ainda não se transformou num aumento acentuado de óbitos, como nas ondas anteriores da pandemia. Contudo, a situação ainda é considerada preocupante: após o período de festas de fim de ano e com o Carnaval no horizonte, o país pode ver a situação se agravar como a dos Estados Unidos, que bateu recordes nos números de internações desde o início da Covid-19. Apesar de a maioria das festas oficiais do Carnaval ter sido cancelada, especialistas alertam para os riscos que os eventos fechados e as festas privativas possam causar no próximo feriado prolongado.
De acordo com último boletim epidemiológico da Fiocruz, divulgado no último dia 13, Pernambuco é o único Estado em situação crítica, com 82% dos leitos ocupados. Distrito Federal (74%), Espírito Santo (71%), Pará (71%), Ceará (68%), Goiás (67%), Piauí (66%), Bahia (63%), Tocantins (61%) estão em zona de alerta intermediário, enquanto as outras unidades federativas vivem situação um pouco menos alarmante em relação ao coronavírus. Entretanto, a situação piorou em 25 dos 27 Estados se considerarmos as notificações de casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), que, além da Covid-19, podem ser causadas pela gripe (que também causou um surto no país) e por outros vírus respiratórios. Em São Paulo, o secretário estadual da saúde Jean Gorinchteyn afirmou, em entrevista ao “Jornal Jovem Pan”, que as internações subiram 89% nas duas primeiras semanas do ano.
A nova onda tem características diferentes das anteriores que passaram pelo Brasil, causadas pela cepa original do vírus e pela variante Gama, surgida no próprio país. A Ômicron encontra um país com a vacinação avançada: 69,5% da população recebeu duas doses e 18,4% já conta também com a dose de reforço, de acordo com a plataforma Our World In Data, da Universidade Johns Hopkins, dos Estados Unidos. Além disso, a própria Ômicron tem mais dificuldade em gerar casos graves, embora ainda o faça em algumas ocasiões, mas é muito mais transmissível que as cepas anteriores. Em países como África do Sul (onde foi detectada pela primeira vez) e Reino Unido, a nova variante Ômicron gerou um aumento gigantesco de novos casos, mas não de hospitalizações e mortes. As infecções começaram a cair dentro de quatro ou cinco semanas. Nos Estados Unidos, por outro lado, segue causando internações e um número elevado de óbitos, cerca de 2 mil por dia (ainda abaixo dos picos anteriores, que chegaram a 4 mil).
“A principal força que freia uma onda é o esgotamento de pessoas suscetíveis, a disponibilidade cada vez menor do vírus se transmitir. Se tiver mais gente imunizada, há menos gente para transmitir. As ondas têm sido muito altas, com o vírus se disseminando mais rapidamente. Mas aí ela se esgota mais rapidamente também, como um carvão no fogo. Se a gente tem um fogo que queima mais rápido, ele se esgota mais rapidamente. O que vai fazer com que a onda se esgote mais rápido é o tamanho da população e o grau de imunização dessa população. Nosso grau é parecido com o dos Estados Unidos, e são dois países muito maiores que África do Sul e Reino Unido. Nesse sentido, eu acho que nossas ondas vão ser mais duradouras porque tem muita gente num país como o nosso que pode se infectar. [A onda da Ômicron] talvez seja menos duradoura do que as anteriores, mas, no Brasil, a gente tem mais ‘carvão’ para queimar, então não dá para ter certeza”, exemplifica o médico infectologista Keny Colares, professor da Universidade de Fortaleza (Unifor).
‘Problema ainda pode ficar grande demais’
Como não é possível apenas esperar que a maior parte dos brasileiros seja infectada, os médicos ainda recomendam que sejam mantidas as medidas não farmacológicas e as vacinas. “É importante diminuir a transmissão e manter a vacina, a máscara, a higienização das mãos, a higienização dos ambientes, o distanciamento social, a testagem. O que a gente já faz há dois anos, deve fazer agora com mais cuidado, porque essa cepa é mais infectante”, avisa o médico Marcos Cyrillo, da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI).
A situação ainda é difícil de se avaliar por uma possível subnotificação — no recorde do número de novos casos em um dia, o Brasil registrou 204 mil novos testes positivos para a Covid-19 na última quarta, 19; os Estados Unidos, que têm população maior que a brasileira, mas realiza mais testes, chegou a 1,5 milhão de positivos diários. “Isso sugere que a gente pode estar com uma grande subnotificação ou que a nossa onda está apenas começando e tem muito como avançar. A mensagem é: a gente não está fazendo o enfrentamento da forma adequada, o problema pode ficar grande demais”, alerta Colares, que também considera que podem haver casos de notificação represada, que irão se juntar aos dados oficiais futuramente.
Se a variante Ômicron causa menos casos graves, ela ainda é mais transmissível e consegue “driblar” parte da imunidade prévia, seja a provocada pelos imunizantes, seja a de outras cepas do vírus. Assim, por infectar mais pessoas em menos tempo, é capaz de levar a uma grande quantidade de indivíduos a ter complicações sérias pelo alto número de infectados em números absolutos. “O que a gente sabe é que essa variante Ômicron se aloja principalmente no trato respiratório, nariz, garganta, traqueia, dando menos complicações nos pulmões. Então, ela tende a causar quadros clínicos menos robustos. Por outro lado, 10 pessoas podem transmitir para 18 pessoas. Ela tem uma alta taxa de contagiosidade. Ter um efeito menos agressivo no organismo aliado ao fato de um grande número de vacinas ajuda muito a não ter casos graves, mas não dá para prever. É muito prematuro dizer: ‘Olha, estamos ganhando o jogo, vamos ficar tranquilos”, analisa Cyrillo.
Após as festas de fim de ano, vem aí o Carnaval
Durante a sua participação no “Jornal Jovem Pan”, Gorinchteyn destacou que o Estado de São Paulo está mobilizando de volta para o combate à Covid-19 leitos que haviam sido destinados a outras doenças após o arrefecimento das ondas anteriores. De acordo com o secretário paulista, 683 leitos já estão prontos para voltar a atender pacientes de SRAG, mas ainda há menos internados. “No pico da primeira onda, nós tínhamos 6.500 pacientes internados em UTI. No pico da segunda onda, 13.150 pessoas internadas. Agora, são 2.800 casos nas UTIs”, revelou Gorinchteyn. Apesar da possibilidade e da necessidade de remobilizar os leitos, somente isso não será possível para evitar que o sistema colapse.
“Não existe nenhum sistema de saúde que esteja pronto para atender milhões de pessoas adoecendo ao mesmo tempo. O nosso sistema de saúde já é deficitário para o tamanho da população em situações normais, mas mesmo nos países desenvolvidos, que têm sistemas de saúde melhores, se deixar as pessoas adoecerem sem freio, não tem sistema de saúde que não vá colapsar. Nesse sentido, é necessário abrir leitos. Precisa abrir UTI, mas não vamos conseguir crescer o sistema na velocidade que o vírus age. Precisamos, então, frear o vírus, estimular a vacinação e a dose de reforço, que as pessoas se testem e façam isolamento e quarentena, que usem máscara”, comentou Colares. “É inevitável que isso não vai penalizar pessoas com outras doenças, que mais uma vez vão ficar sem consulta, sem cirurgia, sem quimioterapia. Quanto mais tempo a demanda for exagerada em cima do sistema de saúde, mais prejuízo também para quem precisa de outras coisas no sistema de saúde, que vão ser penalizadas por tabela”, completou o infectologista.
Internações de crianças e adolescentes são outra preocupação: ambas atingiram níveis recordes nos Estados Unidos e também subiram em São Paulo (61%), segundo dados divulgados pelo governo estadual. A campanha de vacinação da faixa etária entre 5 e 11 anos começou no dia 14 de janeiro. “Tem que vacinar [essa faixa etária], porque a vacina protege a criança e protege a comunidade. Menos gente doente significa menos variantes passeando por aí, menos chance do vírus ter novas mutações. Vacinar a criança é a chance de proteger a comunidade como um todo, diminuindo o número de doentes e até o de variantes” projeta Cyrillo.
Há ainda outro foco de preocupação nos próximos meses: o Carnaval. Enquanto as prefeituras e governos estaduais cancelaram a maioria das festas com blocos na rua, ainda foram mantidos os eventos fechados. Os desfiles de escolas de samba nos sambódromos em São Paulo e Rio de Janeiro foram adiados para abril. No entanto, há grandes eventos que seguem agendados nas duas metrópoles. Na capital fluminense, por exemplo, o festival CarnaRildy reunirá artistas como Anitta, Thiaguinho, Léo Santana e Sorriso Maroto no gramado do Rio Centro, entre os dias 25 de fevereiro e 2 de março. Na outra ponta da Dutra, blocos de Carnaval planejam festas privativas.
“A gente tem sempre que se preparar para o pior cenário, podemos confiar e até torcer para o melhor, mas tem que se preparar para o mesmo cenário de países que estão passando por explosão de internações. Em um contexto desse, em que estamos lutando com a variante super transmissível, juntar um bocado de gente no mesmo lugar não é boa ideia. Estamos observando agora as consequências do Natal e do Ano Novo, com microaglomerações nas casas. Imagine as consequências do Carnaval, com grandes aglomerações. Espero que não paguemos pra ver”, disse Colares sobre as festas. Cyrillo relembra que outros tipos de reuniões com muitas pessoas, que seguem liberadas, também podem causar problemas. “Toda aglomeração como futebol, festinhas, Carnaval, bailes e confraternizações podem gerar um aumento de casos. As pessoas estão próximas, sem máscaras, sem tomar os devidos cuidados. Então, tudo isso pode piorar nossa situação”, alerta o infectologista.
jOVEMpAN