quinta-feira, 04/07/2024
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O Código da Vinci – Sinais dos tempos?

Como tudo se processa num ritmo vertiginoso, e quando me ponho a garatujar ineptamente sobre qualquer tema que esteja na mídia, até que meus lerdos dedos consigam digitar, e que transmita ao editor do site (ou do jornal), o momentum já passou, e o trem-bala da história já está quatro estações na frente. Mas vamos lá.
Eu que não assisti ao filme, nem li o livro, faço umas idéias mais ou menos estereotipadas de ambos, com base no que ouvi ou li de pessoas que viram e leram, etcétera e tal, mas seja como for, creio serem um tanto exagerados os temores dos cristãos com relação a O Código da Vinci. O Vaticano advertiu os fiéis logo que saiu o livro. Católicos e evangélicos estavam apavorados, vendo na própria existência do filme, com o estardalhaço da divulgação, o cumprimento do Apocalipse, e por aí afora.
Bem. Vamos com calma. Umberto Eco escreveu, artigo que me foi mandado via mail por um amigo do Tocantins, que os templários já não existiam na época em que se desenrola a trama do Código. Cito:
“A única maneira de distinguir a seriedade de um livro sobre os templários é verificar se ele se encerra com o ano de 1314, data em que o grão-mestre da ordem é queimado na fogueira.”
Pode ser que sim, pode ser que não. Fernando Pessoa, num texto mencionado por André Coyné num ensaio publicado na revista Axis Mundi, terceiro quadrimestre de 1998, pp. 31 ss., Paidós, Barcelona, afirmava que os Templários, ordem que se julgava extinta, continuavam com boa saúde em Portugal, e Antonio Vieira – o jesuíta que, por indesejável, foi enviado pela corte ao Brasil – era membro ativo da ordem.
Diz Coyné: “Pessoa sentia uma admiração por Vieira que se remontava pelo menos a sua ‘primeira adolescência’. Precisamente no dia em que lera numa crestomatia uma ‘passagem célebre’ de um dos sermões do jesuíta ‘sobre o rei Salomão’, que o fez derramar umas ‘lágrimas de felicidade’ que nenhuma ‘felicidade real’ igualaria depois. Anos mais tarde se referirá a ele como ‘meu mestre Vieira’, e no poema que escreverá em sua honra em 1929, o qualifica de ‘imperador da língua portuguesa’. Mas, se por este poema Vieira encontrará seu lugar em Mensagem, livro de poemas de um nacionalismo místico que Pessoa publicou em fins de 1934, justo um ano antes de morrer, não será tanto como insigne escritor, quanto, sobretudo e em primeiro lugar, como ‘avisador’. Um dos três ‘avisadores’ – entre Bandarra, o ‘Nostradamus português’, e um anônimo em quem é fácil reconhecer o próprio Pessoa – que tiveram – tiveram e têm – a função de anunciar o advento, em Portugal e a partir de Portugal, do Quinto Império, isto é, o Império do fim, sob o cetro do rei ‘oculto’ desde o desastre de Alcácer-Quibir (1578): Dom Sebastião, que, na época de seu reinado, se identificava com Galaad e que deve ‘voltar’ um dia, sob um aspecto ou outro, a sua ‘pátria’ para assumir a monarquia universal, fazendo resplandecer, ante os olhos submersos no caos, a Luz, salvadora se a há, do santo Graal.”
E mais: “Voltarei mais adiante sobre Bandarra. O que no momento destaco é a curiosa indicação de Pessoa concernente ao Grande Mestrado de Vieira, indicação tanto mais surpreendente quanto que na nota biográfica que redigiu pouco antes de sua morte, e à qual pertence o parágrafo que vou citar, que não saiu à luz até 1985, definia sua própria ‘posição iniciática’ como se segue:

“Iniciado por comunicação direta de mestre a discípulo nos três graus menores da (aparentemente extinta) Ordem Templária de Portugal.”

Vieira viveu no período de 1608 a 1697, três séculos depois da suposta extinção da ordem.
A questão das relações entre Jesus e Maria Madalena, ou Maria de Magdala, foi tratada de maneira diversificada entre os inúmeros evangelhos. Cabe aqui um parêntese. É, ou foi, muito discutível a escolha de quatro evangelhos, que passaram a figurar como “canônicos”, e a proscrição de outros, anatematizados como apócrifos – termo que, dentro da política da igreja em expansão, também passou a ser considerado suspeito, pois originalmente, no grego, significava “secreto”, mas passou a significar, pejorativamente, “falso”. Lutero, ao promover sua “reforma”, engoliu a Bíblia tal como adotada pela igreja que ele rejeitou; talvez devesse ter ido mais a fundo em seu protesto e procurar investigar como era, de fato, o cristianismo primitivo. Mas, atualmente, parece que a igreja romana está, de alguma maneira, suprindo esta falha, e naturalmente, como convém aos cristãos de hoje, exerce uma política dupla: oficialmente condena, e ao mesmo tempo divulga os apócrifos; nisso, aliás, os evangélicos estão alguns passos atrás (passos que, eventualmente, podem representar séculos): deveriam deixar o preconceito de lado e também examinar os apócrifos.
“O ambiente e o marco da ordem franciscana se parece mais que qualquer outra com uma organização dervixe. Além dos relatos sobre são Francisco, compartilhados pelos mestres sufis, todos os pontos coincidem. A especial metodologia do que Francisco chama ‘prece santa’ indica uma afinidade com o ‘recordar’ dervixe, completamente apartada dos giros. O hábito da ordem, com capuz e mangas largas, é o de todos os dervixes do Marrocos e da Espanha. Como o mestre sufi Attar, Francisco trocou suas roupas com um mendigo. Viu um serafim com seis asas, uma alegoria usada pelos sufis para comunicar a fórmula do bismillah. Descartou umas cruzes cheias de pregos que muitos de seus frades usavam para se mortificar. Este ato pode não ter sido executado exatamente como se conta. É possível que recordasse a prática dervixe de rejeitar simbolicamente uma cruz com as palavras: ‘Podes ter a Cruz, mas nós temos o significado da Cruz’, que ainda está em uso. Esta, incidentalmente, poderia ser a origem do costume templário, relatado por testemunhas, segundo o qual os cavaleiros ‘pisavam a Cruz’.
“Francisco não quis ser sacerdote. Como os sufis, arrolou leigos em seu ensinamento, e também como os sufis, mas ao contrário da Igreja, tentou propagar o movimento entre todas as pessoas, em alguma forma de filiação. Esta foi ‘a primeira reaparição na Igreja, desde seu estabelecimento hierárquico, do elemento democrático: os cristãos como algo mais que simples ovelhas que devem ser alimentadas, e almas que devem ser dirigidas’.”
O trecho acima, de Os Sufis, de Idries Shah, tradução livre de Los Sufis, versão de Pilar Giralt e Francisco Martínez, 3.ª, 1999, Kairós, Barcelona – onde optei por uma citação longa – serve para ilustrar algumas diferenças marcantes entre o cristianismo naquela fase de transição, no período medievo, e isso que hoje é tido como tal. Da mesma forma que Francisco – ou Francesco – e Vieira foram iniciados em ordens não reconhecidas pelo clero, também o papa Gerberto (Silvestre II), que estudou na Espanha moura, conforme cita o mesmo livro, fez “uma cabeça de latão”, entre muitas coisas “mágicas”; Tomás de Aquino, discípulo de Alberto na época, despedaçou a sua, “que falava demais”. E, em 1268, o monge franciscano Roger Bacon, reclamado por diversas ordens esotéricas/iniciáticas, escreveu algumas palavras que são a base da ciência experimental moderna.
Em 367 d.C. o bispo Atanásio de Alexandria, no Egito, expediu uma ordem pra que fossem destruídos documentos com tendências heréticas, completando assim um cerco que se fechava desde o século anterior, além de concretizar a decisão tomada pelos bispos reunidos no concílio de Nicéia, em 325. Muita coisa poderia ser diferente, não fossem as conveniências seculares e eclesiásticas. E, mesmo com toda a força das tramas políticas, muita coisa ocorreu de um modo que não consta dos registros historiográficos.
Com referência às diferenças entre o cristianismo primitivo e o de hoje, em Evangelhos Gnósticos, trad. de Márcia Maia, Mercuryo, SP, 1992, são citadas algumas diferenças entre o cristianismo ortodoxo e o gnosticismo. Enquanto que, no primeiro, “o martírio ajudava a divulgar a fé, aumentando, conseqüentemente, o número de adeptos”, os gnósticos, “por não verem sentido no martírio, não achavam necessário enfrentar as autoridades romanas, pois julgavam mais difícil viver como cristão do que morrer como cristão”. Quem confessar o credo e se batizar é cristão, sendo recebido pelo Igreja – segundo a ortodoxia; do ponto de vista do gnosticismo, porém, “o batismo não faz o cristão, e sim a evidência de sua maturidade espiritual, que determina o convite à iniciação reservada.” “O pecado conduz ao sofrimento” – era a pregação clerical, enquanto os seguidores do gnosticismo acreditavam que – “A ignorância leva ao sofrimento” (p. 19).
A essas alturas do campeonato, porém, a discussão sobre O Código da Vinci está um tanto fora de contexto, obnubilada pelas atenções concentradas na fútil bola. Seja como for, se remanesce no mundo algo do cristianismo primitivo – e eu creio nisso –não será abalado por um livro ou um filme.
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Josué Marcilio é jornalista e secretário judicial, e-mail: josuemarcilio@yahoo.com.br

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Parmenas Alt
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