A francesa Alexandra Loras mudou-se para São Paulo quando seu marido Damien tornou-se cônsul francês no Brasil. No início de setembro, ele deixou o cargo, mas a família decidiu permanecer no país. Aos 39 anos, a jornalista, professora e ativista faz duras críticas ao preconceito racial no Brasil, que ela considera o país mais racista do mundo, mas é otimista: "O Brasil tem meios para se transformar na maior potência mundial." Em entrevista a VEJA, Alexandra falou sobre cotas raciais, sobre as diferenças culturais com a França e sobre como é ser uma estrangeira negra em meio à elite brasileira.
Existe raça? É possível classificar seres humano por raça? No sentido biológico não, somos todos humanos. Mas no sentido social há sim. Estamos presos nessa imagem de democracia racial e da mestiçagem, mas ao mesmo tempo reconhecemos que o preconceito por causa da cor da pele existe. O racismo é real e é um problema, então parece evidente que há um conceito de raça disseminado na sociedade.
Você é a favor das cotas? É muito confortável para o branco falar em meritocracia, dizer que somos todos iguais e ser contra as cotas. Mas em 127 anos após a fim da escravidão, a sociedade brasileira ainda não resolveu seus problemas de forma orgânica, natural. As cotas são humilhantes, mas são necessárias. É uma etapa para reequilibrar a sociedade.
Você acredita que a política de cotas brasileira está no caminho certo? Tanto as cotas raciais como as sociais no Brasil são tímidas, baseadas em porcentagens estatísticas. Se tivesse uma lei de cotas de verdade, teriam de ter 50% de alunos pobres, pardos e negros nas universidades e escolas particulares, boards executivos de empresas, na escola Saint Paul, no Liceu Pasteur, não só nas universidades.
Mas como aplicar as cotas em um país mestiço como o Brasil? Eu entendo que a autodeclaração é um assunto complexo, com margens para muitos questionamentos, mas é ainda a melhor forma para as pessoas se assumirem negras, pardas, brancas. No resto do mundo, pardos são vistos como negros. Nos EUA e na França, quem tem uma gota de sague negro é considerado negro, o que é uma bobagem. Aqui o conceito é mais difuso, conheço pessoas que são filhos pais negros e não se consideram negros. Eu mesmo, aqui no Brasil, sou muitas vezes chamada de morena. No resto do mundo, pardos são vistos como negros. Ser negro ou pardo não é apenas uma questão de cor da pele, é uma consciência. E isso deve ser respeitado.
Poderia se explicar melhor, dar um exemplo? Tenho uma amiga negra que teve uma filha e no hospital escreveram no registro que a bebê era branca. Minha amiga questionou, falou que sua filha era negra como ela. A funcionária do hospital disse que escreveu branca porque ‘queria fazer um favor’. A autodeclaração e a consciência têm de ser respeitadas. Meu filho tem a pele clara e ainda não sei como ele vai se definir na sociedade, se vai se declarar negro, branco ou pardo. É um assunto que precisa ser abordado com cautela, pois entra muito na vida íntima das pessoas, na identidade. Mas sabemos também que autodeclaração pode ser uma defesa. Há pessoas negras que se declaram como pardas e há pardos que se declaram como brancos. Alguns creem que assim, embranquecendo sua identidade, serão mais respeitados.
Num país miscigenado com a tradição de autodeclaração racial, são seria melhor fazer cotas por critério econômico? Ser pobre no Brasil é muito difícil, mas ser pobre e negro é muito, muito, muito mais difícil. As cotas têm de ser econômicas e raciais. Esse discurso da democracia racial brasileira é bonito, mas não é real. Não há 50% de negros ou pardos protagonistas em nenhuma área da sociedade, na política, na televisão, na direção das empresas. Não vamos conseguir superar os quase 400 anos de escravidão sem políticas de inserção de negros e pardos pobres em todos os setores da sociedade. É uma reparação para equilibrar a sociedade. Basta olhar a sociedade brasileira, que 128 anos depois da abolição ainda é extremamente desigual.
Há relatos da dificuldade de alunos cotistas acompanharem o nível dos estudos. Não é o caso resolver primeiro o problema da educação básica para que as diferenças de formação entre negros, pardos, brancos, amarelos e índios desapareçam? Creio que os dois têm de caminhar juntos, a melhoria na educação e as cotas. Pois não é só um problema de qualidade de educação. Na França, os negros e árabes estudam nas mesmas escolas dos brancos e lá eles também sofrem preconceito por seu tom de pele. O racismo é algo que está entranhado na sociedade, que se reproduz em diferentes locais, aspectos e escalas.
Por que para combater o preconceito, é preciso estimular uma consciência racial? O orgulho pela miscigenação nacional passe a ser um empecilho nesse objetivo?Não é preciso, mas sei que muito pensam assim. Muitos ativistas negros não querem nem se relacionar com brancos; e essa postura é errada. O branco de hoje não é responsável pela escravidão, mas tem responsabilidade em equilibrar a sociedade em que vive. Esse orgulho é relativo, pois ao mesmo tempo em que o brasileiro gaba-se da miscigenação e da suposta democracia racial, não há 50% de negros ou pardos protagonistas em nenhuma área da sociedade, na política, na televisão, na direção das empresas.
Você já disse em outras oportunidades que considera o Brasil o país mais racista do mundo. Continua pensando assim? Sei que essa colocação é um pouco violenta para os brasileiros que gostam de se ver morando em um país onde a democracia racial deu certo. Mas o Brasil é o mais racista porque tem a segunda maior população negra do mundo e isso não é refletido na sociedade. Nos EUA têm quase 13% de negros e muitos dizem que é o mais racista do mundo, mas lá eles têm um presidente negro e muitos negros na mídia, no show business, no Congresso, médicos, advogados, executivos. Morei quase quatro anos nos EUA e em três cidades americanas, Washington, El Paso e Los Angeles, e nunca me senti discriminada lá. Aqui eu me sinto todos os dias, basta eu andar umas quadras e ir ao shopping.
"As cotas são humilhantes, mas necessárias. É uma etapa para reequilibrar a sociedade"
Poderia dar exemplos de situações em que se sentiu discriminada? Já passei por muitas situações. Fui barrada em um hotel cinco estrelas de Salvador por ser negra, minhas bagagens sempre são revistadas nos aeroportos, também sou questionada por não estar de branco em shoppings aqui em São Paulo e isso é frequente. Meu filho tem a pele clara e muitas vezes já fui tratada como a babá dele. Já fui barrada no clube Pinheiros em São Paulo porque levei a carteirinha do meu filho e esqueci a minha. Aí a funcionária ficou procurando meu nome no cadastro das babás e não dos sócios. Falo com sotaque e uso roupas de grife, mas muitas pessoas só olham para a cor da minha pele.
E na França? Também sou discriminada lá. Uma das perguntas que mais escuto lá é: “Você é ‘francesa-francesa’ mesmo?” Como assim? ‘Francês-francês’ é branco e francês-sei-lá-o-que’ é negro? Por eu ser negra não sou francesa? Já passei por isso muitas vezes, com funcionários públicos, resolvendo burocracias administrativas, nas ruas. Não sou reconhecida como francesa por ser negra e isso me incomoda demais, mexe com minha identidade. Sou francesa e negra. Lá, por lei, não há estatísticas raciais para saber a porcentagem de brancos, negros, pardos e asiáticos na sociedade. Isso é um erro isso, deseduca a população. A França tem territórios ultramarinos, Guiana Francesa e Martinica, por exemplo, que são majoritariamente negros. Assim como Portugal e Inglaterra, por causa do passado colonizador, a França também tem famílias negras que já moram há muitas gerações no país.
Mesmo com o racismo presente na sociedade brasileira você decidiu ficar. Por quê? O racismo nunca foi protagonista da minha experiência, senão não teríamos ficado aqui. Meu título de consulesa me deu um palco que nunca tive em outros países em que eu morei. Talvez parte da sociedade e da imprensa tenham se interessado por mim porque uso os mesmos códigos da elite. Mas eu poderia ter usado esse espaço e sido convidada a falar de gastronomia francesa, moda, arte contemporânea, turismo, vinhos, podia ter seguido essa linha, mas me deram espaço para falar de racismo, de identidade. Para mim foi uma justiça restaurativa. Se eu fui inferiorizada toda minha vida, o Brasil me deu uma voz que tem ressonância e pode fazer alguma diferença.
Além desse espaço que você conquistou, o que mais a atraiu? O Brasil mexeu muito comigo. Comecei a estudar e descobri muitas figuras negras brasileiras fantásticas, o Machado de Assis, o André Rebouças, o Theodoro Sampaio. O país me deu uma dignidade para eu me assumir como mulher negra em uma sociedade desigual, e isso é importante. Na França, eu apresentava um programa de TV, mas só falava de assuntos que tinham a ver com a pauta do meu show, não expressava tudo o que queria. Nunca me convidaram para falar sobre identidade, então fiz um mestrado sobre a falta de representação dos negros na mídia francesa no Institut d'Études Politiques de Paris, [o Sciences Po, uma das faculdades de política mais respeitadas do mundo]. Lá eu estudei o assunto e aqui eu posso falar sobre e fazer algo para mudar isso.
Você é famosa por ter um discurso conciliador e otimista… Não bato de frente, uso um pouco de diplomacia, de dança, para me livrar de situações embaraçosas e criar pontes, abrir portas. Meu discurso é mais digerível que o de muitos militantes negros radicais. Mas claro que não posso me expressar em nome das mulheres negras brasileiras. Só posso me expressar em meu nome, Alexandra Loras, negra francesa.
Você não tem medo de virar um clichê? Tipo a gringa que veio visitar e não quis mais sair do Brasil? Cair no cliché não me importa porque como estrangeira eu enxergo coisas nos brasileiros que muitas vezes eles não conseguem ver. Uma das coisas que mais me chama a atenção na cultura brasileira é o chamado complexo de vira-latas, que faz com que o brasileiro precise ir morar fora para se dar conta do quanto ele tem empatia, orgulho, compaixão e conexões com o Brasil. É algo que está no ser, na alma. Isso faz com que o brasileiro seja muito sensível.
Essa sensibilidade é a característica que você mais admira nos brasileiros? A sensibilidade e a alegria. Olhe o meu país, a França, onde a infraestrutura é maravilhosa e tudo funciona. Mas nós estamos sempre reclamando. Os brasileiros estão passando por uma crise política e econômica difícil, têm buracos nas ruas, um sistema educacional que pode ser melhorado e muitas outras deficiências, mas estão ligados ao presente, ao que têm agora, e ficam felizes com pouco. E os brasileiros não enxergam esse otimismo e essa alegria como algo fantástico. Eu acho mais importante crescer num país com problemas, mas com uma sociedade mais alegre e mais informal, do que crescer num país rico com uma população que toma antidepressivos. A França é o segundo país que mais consome antidepressivos do mundo. Uma pesquisa identificou que nosso nível de felicidade é igual ao do Afeganistão.
Falando em clichês, você acredita que o Brasil é o país do futuro? Sim, o Brasil é o país do futuro. E creio que será o primeiro, na frente de todos os outros. As pessoas têm ainda certa arrogância e olham o Brasil como um país de terceiro mundo, mas para mim, o país tem meios para se transformar na maior potência mundial. É uma das dez maiores economias do mundo, isso pelas fontes oficiais, sem contar o dinheiro da corrupção. Para mim, o maior problema do Brasil é não enxergar e valorizar seu próprio potencial. O Brasil tem uma quantidade enorme de talento e capital humano que não é usado. Há falta de planejamento econômico, faltam projetos sérios para o país.
Poderia dar um exemplo concreto desse seu otimismo com o Brasil? Os brasileiros são muito flexíveis e adaptáveis, estão muito mais preparados para questionar, criticar e evoluir como sociedade. E creio que aqui o povo está quase pronto para entrar e abraçar uma nova era, mais humana e justa. Vejam a preparação do Carnaval carioca. Acontece tudo na hora, é super organizado. É a maior e mais bela produção criativa mundial e é feito por quem? Por famílias que chamamos de carentes, que moram em comunidades pobres. Eles têm um talento, um potencial que não é plenamente usado. Quantos Beethovens brasileiros nunca foram apresentados a um piano?
Foto: Alexandre Schneider/VEJA