quinta-feira, 21/11/2024
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Nua para exorcizar o preconceito e se orgulhar de sua estética negra, a Trip Girl Ilka Cyana dá a letra

Descobrir Ilka Cyana é descobrir todo um mundo. Ela é o tipo de garota que encurta distâncias. Faz o longe parecer perto: durante as 3 horas de papo via Skype, eu em Tocantins e ela na Bahia, senti que o mormaço do cerrado se temperava na maresia a entrar pela janela de seu apê — sim, ela fez questão de me mostrar: "Perto de muita água tudo é feliz", definiu-se, citando Guimarães Rosa. Mesmo um papo todo troncho e torto, iniciado via e-mail, depois prosseguido via WhatsApp e likes no Facebook, pode tornar a conexão cheia de delay e freeze em uma sala de estar — estranhos em amigos íntimos. "É assim que as coisas são hoje, e tudo bem", ela diz, se espreguiçando, enquanto tento focar seus lindos olhinhos oblíquos pela câmera do iPad.

Crédito: Pablo Saborido

Claro que fico vesgo nesse chat, mas não só pela beleza do mulherão de 1,77 metro de curvas lapidadas nas ladeiras entre Cidade Baixa e Cidade Alta. É que o esporte favorito desta soteropolitana de 22 anos é derrubar queixos, mixar o discurso amoroso ao discurso político, tudo pontuado por sorrisos imensamente brancos na cara preta. Sim, preta é como ela se define. Não foram só as curvas que o Ilê Aiyê formou em Ilka, como também seu empoderamento afrofeminista. Uma perspectiva de mundo que a fez se espantar em ver mais racismo em São Paulo, essa metrópole que se acha tão aberta a diferenças, do que em Salvador, dita Roma negra. Filha de um sargento da Marinha e de uma professora, Ilka aproveitou uma greve na UFBA para passar um ano em SP. Na época tinha este belo corte black power que você vê nestas imagens — agora, enreda o cabelón em tranças nagô. "Estou num ponto de ônibus e me chega um senhor branco apontando a minha cabeça: 'Mas que cabelo é esse?'. Fiquei de cara com a falta de compostura do sujeito e lhe dei uma bronca na hora: 'Eu é que pergunto. Que pergunta é essa?'. Duvido que se fosse uma branca ele teria a mesma falta de cerimônia na abordagem", conta. Ilka ria quando a chamavam de "exótica" no tempo em que foi hostess de um restaurante grego. "O racismo no Brasil se esconde em muitas camadas", reflete.

Crédito: Pablo Saborido

"Eu morava no Jardim América, onde pretos são raros. Desse modo, percebia com frequência um olhar enviesado para meu cabelo, minha cor, como quem pergunta: o que ela faz por aqui? Trabalha onde? Mas seja São Paulo ou Bahia, temos uma série de sutilezas e covardias para encobrir as ações racistas. É foda ser preta no Brasil: ainda é um país onde politicamente se governa por privilégios de renda e cor", detona. Ilka comenta que, mesmo sem trabalhar exatamente como modelo, considerou essencial fazer este ensaio sensual. "Ampliar a representatividade da estética negra em revistas como a Trip também serve ao empoderamento da mulher negra. E, se cuidem, porque estamos entrando na grande fase dos afrodescendentes", ela alerta, citando a política de cotas nas universidades como responsável pela maior visibilidade dos negros na cultura digital dos últimos dez anos. "A comunidade negra precisa ocupar os espaços das elites política, econômica e cultural, na mesma proporção da população brasileira — ou seja, na maioria", ri. "Este ensaio não é tudo, mas já é um passo à frente", afirma.

Crédito: Pablo Saborido

Os questionamentos desta estudante de artes e arquitetura se espraiam para todos os lados. Ela defende que o Estado deva democratizar a comunicação social, exigindo como contrapartida para a liberação de concessões uma porcentagem mínima de negros na programação: para quem volta e meia liga a TV e acha que por acaso acordou na Suécia ou na Rússia, uma iniciativa revolucionária e muito bem-vinda para um país que ainda não se enxerga multiétnico. "Sou uma nega metida mesmo", ela ri.

Crédito: Pablo Saborido

"Mas não seria lindo na abertura da Olimpíada a Gisele ser acompanhada por mulheres negras, índias, de outras cores e raças?", sugere Ilka, para quem Lázaro Ramos e Taís Araújo não podem ser protagonistas solitários da atuação afirmativa dentro da mídia. Ilka ainda não sabe exatamente para onde vão seus estudos em arte e arquitetura. Em São Paulo, criou uma grife de brincos reciclando todo tipo de bugiganga que achou na rua 25 de Março — e a marca Brincando acabou pulando em vários editoriais de revistas de moda. Enquanto desenha novas bijuterias, trabalha com gestão cultural e estuda urbanismo; ela prefere, ao monumentalismo de Niemeyer, o arquiteto dinamarquês Jan Gehl, crítico da autocracia e defensor das cidades para as pessoas.

Crédito: Pablo Saborido

Além dos livros de arte, Ilka se debruça sobre a obra da jovem anglo-nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, autora de Americanah. Sua playlist leva Karol Conká, Itamar Assumpção, Leon Bridges, João Donato, Perota Chingo e o "luminoso" Gilberto Gil. "Uma vez ele me chamou de 'impressionante' no Camarote 2222; foi o maior elogio que já recebi", conta esta fã do Ilê Aiyê, do Baile dos Mascarados e de pipoca. E de acarajé. E de capoeira, de natação e de veleiros. E de calor, muito, muito calor. E do namorado, um cientista social. Sim, nem tudo é perfeito, folks: o coração de Ilka tem um navegante. Casamento, no entanto, ainda não está nos planos. Não é mulher de rótulos: "Relações monogâmicas ou abertas são muito limitadoras. As próximas gerações precisam descobrir novos formatos. Com liberdade para todos", sugere. E enquanto a noite avançava enfumaçada, no nosso Skype a imagem pixelada de Ilka derivava em novas direções falando languidamente de amor, de suas lutas, de seus sonhos, e das belezas e peculiaridades baianas que a mantêm com os pés bem grudados na boa terra — mas a mente sempre viajando no Atlântico aos seus pés. Descobrir Ilka Cyana é descobrir todo um mundo que não acaba.

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