“Ele estava estressado”, “Foi apenas uma briga” e “Não precisa exagerar, foi só uma discussão” são justificativas comuns para casos de violência doméstica. Foi exatamente isso que Karen Mizuno ouviu de sua família ao denunciar o irmão que a agrediu. Em uma publicação feita recentemente em seu perfil no Facebook, a jovem conta que não teve apoio da família e precisou sair de casa quando decidiu recorrer à Lei Maria da Penha .
O caso de Karen não é algo isolado. De acordo com dados do “Mapa da violência 2012: Homicídios de Mulheres no Brasil”, a cada três pessoas atendidas no SUS por conta de violência doméstica , duas delas são mulheres. Dados da edição de 2015 do levantamento também mostram que, a cada dia de 2014, 405 mulheres buscaram ajuda em uma unidade de saúde por alguma violência sofrida. Além disso, dados do balanço do “Ligue 180 – Central de atendimento à Mulher” revelam que mais de 80% dos casos de violência reportados em 2013 foram cometidos por homens com quem as vítimas mantêm ou já mantiveram algum vínculo afetivo.
Esses dados estão tão presentes no cotidiano da sociedade que, muitas vezes, é difícil identificar e reconhecer certos comportamentos como violentos. “É um problema social de causa estrutural. A sociedade como um todo admite e tolera esse tipo de violência que mantém as mulheres ligadas ao papel do feminino, do frágil e restritas ao espaço privado”, diz Wânia Pasinato, socióloga e assessora do USP Mulheres. Ainda assim, o reconhecimento da violência no ambiente doméstico como um problema social é algo recente. A socióloga explica que o debate sobre o tema como algo que não deve ser restrito ao âmbito familiar começou da década de 1980.
Em entrevista ao Delas, a advogada Ana Lucia Keunecke, diretora jurídica da ONG Mulher Sem Violência, explica que o sistema patriarcal em que vivemos também faz com que a violência seja encarada como algo normal. “As pessoas acham que, por ser uma relação familiar, existe a premissa da agressão”, explica Ana.
Essa naturalização dificulta o processo de reconhecimento da violência e da denúncia. "O termo 'violência' nos faz pensar em algo grave ou em situações que vivemos com estranhos, como assaltos, e muitas mulheres enxergam o que vivem como algo pouco importante, parte do dia a dia, por ser frequente", explica Luiza Cadioli, médica de familia e uma das diretoras do Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. "Inseridas nesse sistema patriarcal e de relação romântica, custamos a acreditar uma pessoa que amamos agrediu. Há um conceito de amor ligado à posse, mas quem ama não bate", completa a advogada Ana Lucia.
Ciclo da violência
Na publicação de Karen, a jovem comenta sobre a violência ser algo frequente no âmbito familiar. “O ciclo de violência doméstica em casa sempre foi presente, por isso o descaso e normalização do ato”, escreve.
Na década de 1970 a psicóloga norte-americana Leonor Walker identificou que há um ciclo de agressão que acontece em fases. Primeiramente, há um momento de tensão entre o homem e a mulher, seguido pela violência e, por fim, o agressor comporta-se de forma arrependida e carinhosa. E assim segue até ser rompido, seja com a denúncia da vítima ou, em muitos casos, com o feminicídio – que é o assassinato da mulher.
Apesar de ser utilizado para explicar a violência, Wânia considera necessário pensar além desse ciclo para entender o que acontece com muitas mulheres. Segundo a socióloga, algumas mulheres vivem anos apenas na "fase de tensão", sem que haja de fato uma agressão, o que não deixa de ser uma violência. “A explicação do ciclo é muito genérica para compreender a realidade e a experiência das mulheres, e quando entramos em outras formas de violência que não a física, esse ciclo é ainda mais complexo”, comenta.
Tipos de violência doméstica e familiar
Criada em agosto de 2006, a Lei Maria da Penha (nº 11.340) reconhece cinco formas de violência doméstica que aparecem em decorrência de laços de afetividade, sem que os envolvidos necessariamente morem juntos. Isso quer dizer que essa violência não acontece apenas entre marido e mulher, como costuma-se acreditar. Ela pode acontecer, por exemplo, entre filho e mãe, tio e sobrinha, pai e filha ou irmão e irmã, como é caso de Karen.
Veja os tipos de violência que a mulher pode ser vítima:
Violência psicológica
Comportamentos como xingar, ameaçar, chantagear, ridicularizar, humilhar e intimidar, que desvalorizam a mulher e causam danos emocionais.
Violência física
Qualquer ato cometido na intenção de agredir a saúde da mulher como bater, empurrar, sacudir, atirar objetos e mutilar.
Violência sexual
O ato de forçar a mulher a ter relações sexuais quando não ela quer, quando está dormindo ou sem condições de consentir – o que configura estupro. O tópico também considera atos como forçar com que a mulher faça sexo com outras pessoas, impedir que ela utilize métodos contraceptivos, forçá-la a engravidar ou forçar um aborto.
Violência patrimonial
Restrição ao acesso da mulher aos próprios bens, destruição de objetos pessoais e instrumentos de trabalho e controle do dinheiro dela sem que haja permissão.
Violência moral
Qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria, ou seja, fazer comentários ofensivos e falsos sobre a mulher.
O que fazer?
Uma vez que a mulher reconhece que está vivendo uma situação de violência no ambiente doméstico – o que pode acabar sendo uma das partes mais difíceis -, há várias formas de agir. Se a mulher decidir denunciar o agressor e seguir com um processo judicial, é preciso ir até uma delegacia para fazer um boletim de ocorrência. Em algumas cidades existem Delegacias da Mulher (DDM), especializadas em atendimento à mulher que devem oferecer uma equipe preparada para recebê-la. Caso não haja nenhuma DDM na cidade ou na região, é possível recorrer a uma delegacia de polícia comum.
Ana Lucia diz que, após a denúncia, é possível pedir uma medida protetiva para afastar o agressor da mulher e mantê-la e segurança. De acordo com a advogada, existem diferentes medidas protetivas que serão definidas pelo juiz caso a caso, podendo incluir desde o afastamento do agressor do lar e pagamento de alimentos até a prisão desse homem. A advogada também explica que, uma vez feita a denúncia, esse processo seguirá até o fim, ou seja, não há como a vítima recuar e retirar a queixa; a Lei Maria da Penha prevê que o caso siga como uma forma de proteção à mulher.
Por outro lado, apesar de haver meios legais para que a denúncia seja feita, nem sempre o processo é fácil. Muitas vezes, não há uma rede de apoio preparada para orientar a vítima da melhor forma e não são raros os relatos de mulheres que foram fazer a denúncia e ficaram acuadas, sentindo-se ainda mais culpadas pela forma como foram recebidas.
Em razão disso, muitas mulheres preferem não denunciar. Caso essa seja a escolha da vítima, é possível seguir outros caminhos para romper com essa situação. Ana Lucia sugere ligar para o 180 (Central de Atendimento à Mulher), buscar ajuda na defensoria pública e procurar casas e ONGs de apoio às vítimas de violência que estão preparadas para orientá-la. Karen, por exemplo, encontrou apoio em grupos de mulheres e da comunidade asiática. “É importante se empoderar e procurar meios para se emancipar”, recomenda Ana Lucia.
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O apoio é essencial para a mulher se reconhecer como vítima e encontrar mecanismos para sair da situação
Como ajudar uma vítima?
O ditado popular diz que em briga de marido e mulher são se mete a colher, mas será que essa é a melhor saída? Como apontam as especialistas, o contexto social que vivemos faz com que identificar uma situação violenta seja um desafio para algumas mulheres. É aí que entram os amigos, conhecidos e familiares dessa mulher.
De acordo com Luiza, a maioria das pessoas, ao olhar de fora, não entende porque uma mulher continua em um relacionamento violento, esse julgamento aumenta a culpa e não a ajuda a se libertar das situações de violência. Ao invés disso, é necessário ajudá-la a nomear o que ela vive como violência. Entender que humilhação, chantagem, agressão física, sexual, psicológica, tudo que ela vive que traz sofrimento é violento e que é possível viver de outra forma.
É muito importante respeitar a autonomia e a vontade dela. Se não quer denunciar, por exemplo, é possível mostrar outros caminhos para conseguir sair dessa situação. “Também é fundamental, com o tempo e a confiança, saber se ela sente que corre risco de vida. Ajudá-la a formular um plano, uma estratégia de fuga caso precise”, orienta a médica.
Orientá-la a um serviço de terapia também pode ser algo interessante para, de acordo com Luiza, ela fortalecer a autoestima e ter um espaço de reflexão para entender o sofrimento, saber que o que vive é uma questão frequente e de saúde pública é importante.
É possível algumas mulheres desenvolverem depressão e ansiedade quando sofrem violência doméstica. "Sintomas vagos e inespecíficos também se apresentam mais frequentemente, como dores musculares, dor de cabeça, enjôos e tonturas aparentemente sem explicações", diz a médica. Nesse sentido, acompanhar em consultas médicas pode ser uma grande ajuda.
No geral, ouvir o que essa mulher tem a dizer e respeitar o tempo dela para reconhecer a situação que vive é crucial. “Nenhuma mulher vítima de violência doméstica gosta de estar nessa situação. Provavelmente ela não sai dessa situação porque não tem apoio, está fraca ou violentada demais para reagir”, finaliza a advogada Ana Lucia.
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