Especialistas apontam que situação deixa países à mercê de líderes autoritários e apontam a dificuldade no cumprimento de promessas e a polarização política como os principais fatores que dificultam a estabilidade da região
As manifestações que acontecem no Peru desde o começo de dezembro, após a destituição de Pedro Castillo da presidência, acenderam um alerta sobre a situação democrática na América Latina. Um estudo realizado pela Idea International, uma organização intergovernamental que apoia a democracia sustentável em todo o mundo, apontou que houve perda na qualidade democrática na região e que a democracia está enfraquecida. De acordo com especialistas, essa situação abre espaço para o surgimento de um outsider e anti-establishment, ou seja, deixa os países à mercê de líderes autoritários. Os protestos do Peru, em si, não devem afetar outras regiões da América Latina, porque a situação política peruana possui características próprias que fazem com que o país tenha tido seis presidentes em quatro anos. E é justamente isso que cansa a população e tem feito com que eles saiam às ruas para pedir a renúncia de Dina Boluarte, que assumiu a presidência após a saída de Castillo, eleições gerais e uma nova Assembleia Constituinte. Porém, esse cenário mostra a dificuldade que os governantes têm em cumprir com suas promessas quando chegam ao poder.
“Nos últimos anos, de forma geral, a América Latina tem passado por uma instabilidade política e democrática muito forte, e isso afeta a região toda, por uma questão econômica, comercial e reputacional”, explica Eduardo Fayet, consultor e especialista em Relações Institucionais e Governamentais. Segundo ele, quando se tem essa instabilidade política, dificulta a exportação entre os países, diminui a capacidade de estabelecer relacionamento comercial, político e diplomático e a região fica desacreditada devido à baixa segurança e instabilidade politica. “Isso nos coloca em uma posição regional desfavorável em relação a outras áreas que podem passar a ocupar um protagonismo maior que a América Latina”, diz Fayet, acrescentando que isso desqualifica a região como local que poderia ter melhora no desenvolvimento político e social de forma estruturada. Para ele, esses problemas democráticos têm relação com dois fatores: economia e polarização política. “Poder econômico gera duas coisas complicadas: a desigualdade social e o desequilíbrio econômico. Esses dois elementos criam um ‘caldo’ para a polarização política, que é muito forte para a redução da qualidade da democracia da América Latina”, explica.
Leandro Almeida, doutorando em ciências política da USP, fala que o maior problema que a região encontra é o choque de expectativa da população e forças políticas, por causa da dificuldade do governo de entregar o que foi prometido durante as campanhas. “Essa expectativa e realidade afeta o Peru, mas também outros países. Ainda que seja improvável que os protestos peruanos se espalhem para outros lugares, porque têm uma dinâmica pessoal, o Peru tem um pano de fundo em comum com os outros lugares da América Latina”. Assim como Eduardo, Leandro também fala sobre a dificuldade provocada pela polarização. “Temos uma insatisfação popular com o sistema político que tem dado espaço para sistemas autoritários”, fala Almeida. Ele acrescenta que a gente percebe o sentimento anti-establishment em vários países. “Percebemos essa ascendência populista emergindo ou conseguindo alcançar o governo com força política relevante. El Salvador é o principal exemplo de emersão de líder populista com práticas autoritárias”. O especialista também fala que os outsiders têm se tornando mais relevantes e os partidos políticos tradicionais estão perdendo espaço. Uma pesquisa da Gallup realizada em dez países sul-americanos entre 2009 e 2016 mostrou que 76% dos peruanos não confiavam em seu governo nacional, marcando o nível mais alto dessa desconfiança documentada na região. Outra pesquisa note-americana apontou que a satisfação com a democracia no Peru saiu de 52% para 21%.
Desde 7 de dezembro, quando o então presidente Pedro Castillo tentou dar um golpe de Estado, o país tem vivido intensas manifestações. Na noite de quinta-feira, 19, por exemplo, centenas de manifestantes, alguns que viajaram mais de 24h, se direcionaram para a capital do país com a intenção de ‘tomar Lima’, alegando que a região tem um peso maior na luta. “É uma manifestação justa e democrática dos cidadãos que chegaram das regiões e também daqui, de Lima, onde pedem a renúncia imediata de Dina Boluarte, a convocação de novas eleições para este ano de 2023 e o fechamento do Congresso”, diz o sindicalista Gerónimo López, que convocou a greve. “É uma greve cívica popular nacional com manifestações pacíficas de organizações de diferentes regiões, evitando qualquer ato de vandalismo”, completou. Eduardo Fayet fala que os problemas no país não são de hoje. Pelo contrário, desde a época de Alberto Fujimori, o Peru enfrenta uma instabilidade sistemática, com várias destituições do cargo – em quatro anos houve seis presidentes. “Isso é resultado da instabilidade política, que tem origem na polarização. Com isso, as partes envolvidas não negociam mais, não querem mais fazer acordo e não estão dispostas a criar soluções comuns para que o país se desenvolva”, fala o especialista. Fayet diz ainda que esse problema ocasionado pela polarização não é algo específico do Peru, mas uma questão do mundo inteiro. Contudo, diz que no país latino-americano tem sido mais notório, principalmente se observar as regiões que estão se manifestando, que são aquelas localizadas no sul e que vivem situação de extrema pobreza. “A população está vendo que não há consenso e que a classe política se corrompe, tem um conjunto de coisas que não cria um Estado, isso vira um círculo vicioso”, fala Fayet.
Leandro Almeida complementa dizendo que no Peru há uma relação difícil entre o Executivo e o Legislativo, o que permite que “o Congresso remova o presidente de maneira muito rápida em comparação com os outros países”. O cientista político fala que os pedidos dos manifestantes têm sido muito ambiciosos, sendo um deles a renúncia de Dina Boluarte, que já falou que não vai deixar o posto. Entretanto, Fayet acredita que a probabilidade dela sair do cargo ou sofrer impeachment é alta, visto o baixo nível de aprovação. O Instituto de Estudos Peruanos (IEP), mostrou que 71% da população desaprova a brutalidade como Boluarte está conduzindo o seu governo, enquanto 19% aprova e 10% não soube ou se absteve de responder. Em relação ao Congresso, os números são ainda maiores: 88% da população reprova seu desempenho e apenas 9% aprova. Fayet fala da possibilidade da saída de Boluarte e a realização de novas eleições, porém, ele alerta para a necessidade de saber se o Peru vai conseguir remontar uma eleição “com segurança política e jurídica necessária para que se gere uma situação de razoável instabilidade política no país. Essa é a grande dúvida, porque no recente histórico eles estão com uma incapacidade de criar”.
jOVEMpAN