Ativista pela saúde de povos da floresta de renome internacional, Caio Machado relata a sua trajetória de garoto ‘sem rumo’ da cidade grande que encontrou seu propósito de vida na Amazônia. Livro será lançado em outubro
Mobilizar corações, mentes e esforços para a construção de uma realidade com mais justiça social é o que norteia Caio Machado, dentista, ativista e diretor da ONG Doutores da Amazônia, que percorre aldeias e comunidades ribeirinhas para levar o direito à saúde pública aos povos da floresta. Essa jornada é contada no livro “Levante e lute”, que será lançado dia 28 de outubro, em São Paulo, e no dia 1º de novembro, em Brasília.
Em quase uma década de atuação, a ONG já realizou mais de 60 missões, ultrapassando 500 voluntários envolvidos em atendimentos a mais de 60 povos da Amazônia, levando alta tecnologia médica a territórios isolados – um marco mundial no voluntariado da saúde.
“Milagres possibilitaram tudo isso. Nossa meta era levar o melhor padrão de atendimento de saúde a quem quase não tinha acesso. Nos movemos pela crença do ‘não deixe para depois. Levante e lute!'”, diz Machado.
O lema intitula o livro que relata a história do surgimento da Doutores da Amazônia e sua atuação, desde 2015. Escrita por Caio Machado, em parceria com a jornalista Ana Augusta Rocha e fotografias de Cassandra Cury, a publicação traça um panorama do trabalho dos profissionais de saúde e celebra o encontro entre diferentes culturas, que integram seus saberes em nome do bem comum.
Doutores e pajés, médicos e raizeiros, o objetivo de todos é o mesmo: melhorar a vida, o bem-estar e buscar a felicidade dos povos da floresta. As fotos estabelecem, ao longo das 160 páginas, um rico diálogo com o texto, um depoimento de Caio sobre as experiências destes anos à frente do projeto, e cuja história de vida está em simbiose com a da ONG.
Caio Machado em aldeia no Xingu. Foto: Cassandra Cury
Despertar de sonhos intranquilos
O início dessa caminhada coletiva se deu de forma solitária. Caio conta que, aos 26 anos, era um jovem que havia abandonado os estudos e não tinha perspectivas. “Até então, eu só havia conseguido terminar o ginásio e ostentava um currículo extenso em confusões e perdas de tempo”, relata. Foi quando recebeu um chamado que foi o chacoalhão que mudaria sua vida. “Acordei e ainda nem era dia. A vida passava como um filme pela minha cabeça. ‘Levante, levante’, uma voz me disse. Bastou um chamado e um despertar espiritual para eu ter forças e mudar”.
Em seis meses, Caio estava formado no Ensino Médio e já prestando vestibular. Escolheu seguir os passos do pai, um cirurgião-dentista renomado. No curso de Odontologia, logo foi chamado para atuar em um projeto de atendimento a comunidades da Amazônia, na região do Baixo Madeira, Rondônia. Seria a primeira vez que aquele rapaz cosmopolita, nascido e criado em São Paulo, iria vivenciar o Brasil profundo.
“Eu entendi, naquela viagem, a potência da floresta — ao longo dos dias, a paisagem entrava em mim e as pessoas me tocavam profundamente com sua simplicidade. Gestos singelos, olhares sinceros: humanidade”.
Nasce a ONG
Na passagem de 2013 para 2014, Caio faz sua segunda missão em Rondônia. Desta vez, o cenário era outro: a cheia do Rio Madeira, a maior em séculos, submergiu diversas casas, e invadiu o posto de saúde da comunidade, onde ele atuaria como voluntário naquela missão.
“Chegamos em Porto Velho e fomos pegos de surpresa: não era o mesmo lugar que eu conhecia. Assolada por uma grande chuva, a cidade tinha virado um rio por inteiro. Quase não havia terra à vista. Seria impossível chegar ao nosso destino com todos os equipamentos médicos”, relembra.
A elevação do Rio Madeira inundou a área portuária de Porto Velho e interditou a BR-364, isolando as localidades de Guajará-Mirim, Nova Mamoré e Abun. Num esforço, o grupo de voluntários retirou os equipamentos odontológicos do posto de saúde, que estava quase destruído pelas águas, e improvisou um centro de atendimento que, durante 15 dias, funcionou dentro de um bar chamado Hollywood, onde centenas de pessoas foram consultadas.
“Terminada a viagem, uma percepção me veio à cabeça: Holly (sagrada) wood (floresta). A mensagem estava dada. Assim, em meio a um local realmente sagrado para o Brasil e para o mundo, consagramos a ONG que nascia: a Doutores da Amazónia”, conta Caio.
A ONG é fundada em 2015 e, no mesmo ano, mobiliza uma grande equipe de voluntários com médicos, psicólogos e enfermeiros. Em 2016, a ação está ainda maior e realiza centenas de procedimentos em duas comunidades: no distrito de Nazaré e na Reserva Extrativista do Lago do Cuniã.
Neste momento, mais um chamado se anuncia a Caio. A indigenista Ivaneide Bandeira, conhecida como Neidinha Suruí, ativista histórica na luta indígena e fundadora da ONG de Defesa Etnoambiental Kanindé, o convida a atuar junto ao povo Paiter-Suruí, dos estados de Rondônia e Mato Grosso.
Marco mundial
A parceria junto à ONG Kanindé se concretiza em 2017, e se torna um marco histórico mundial na atuação do voluntariado médico. “Resolvi sonhar um pouco mais alto e levar equipamentos de alta tecnologia para comunidades e aldeias”, relata Caio.
O equipamento em questão chama-se Cerec Cad/Cam, um scanner intraoral com uma fresadora 3D que proporciona a confecção de um elemento dentário em um curto espaço de tempo, de alta qualidade e acabamento estético de ponta. Através desse scanner digital, desenha-se a arcada dentária na tela; depois, os elementos dentários são confeccionados.
“Fomos a primeira organização do mundo a aplicar essa tecnologia em missões de voluntariado. Desde 2017, percorremos mais de 60 aldeias levando tecnologia ultra especializada, inclusive a povos isolados, e provando para o poder público, em pleno século XXI, que podemos realizar na floresta os mesmos atendimentos dos grandes centros”.
Em seguida, a equipe ruma à aldeia de Lapetanha, na Terra Indígena Sete de Setembro, e dos povos Paiter-Suruí e Uru-Eu-Wau-Wau. Ali, se estabelece uma profunda relação entre Caio e o povo Suruí. O dentista é batizado pela etnia, recebendo o nome de Gamebey.
“O encontro com toda aquela gente me emocionou profundamente, desde os primeiros instantes. Se durante mais de dez anos a minha experiência amazônica se concentrará mais nas populações ribeirinhas, agora, com os indígenas Suruí, eu tinha uma certeza absoluta: além de ter voltado para casa, tinha reencontrado minha família”, relata Caio.
A escritora Ana Augusta Rocha
Há mais de 25 anos, o Brasil e sua pujante natureza fazem parte dos dias da jornalista e escritora Ana Augusta Rocha, que desde sempre gosta de contar histórias impactantes e inspirar as pessoas a agir e promover mudanças positivas. A sua paixão pelo Jornalismo e pela escrita inspiracional já lhe renderam prêmios renomados, como o Prêmio Abril de Jornalismo e Ecologia e o Prêmio Jabuti 2012.
Fascinada pela trajetória de Caio, com quem hoje trabalha no braço cultural da ONG, foi dela o olhar sensível para entender que ali havia uma história que merecia ser contada e dividida com os brasileiros. A sua grande influência em relação aos povos originários, contudo, nasce bem antes de conhecer a Doutores da Alegria. Foi com Orlando Villas Boas, com quem trabalhou em duas diferentes ocasiões e mapeou por sete anos as notáveis paisagens do Brasil para fazer os livros da série Brasil Aventura.
À frente da Editora Auana foi ela a responsável pelos textos e edição do livro e pela direção do projeto pedagógico Levante e Lute, que consiste em incentivar do povo Kalapalo a produzirem documentação, em vídeo, sobre sua história, cultura e os movimentos que se envolvem atualmente.
Os Kalapalo foram os primeiros a serem contatados pelos irmãos Villas Boas em 1945, os criadores do Parque Indígena do Xingu, no estado do Mato Grosso.
Pelas lentes de Cassandra Cury
Cassandra Cury, fotógrafa e documentarista, iniciou a caminhada profissional focada na fotografia outdoor, registrou as belezas naturais de uma vasta área do território brasileiro e de alguns países da América do Sul e Europa. Ao mesmo tempo em que a natureza se descortinava por esses caminhos, o olhar encontrava povos de comunidades tradicionais que surgiam para compor cenários ainda mais belos. O coração vibrava com os rostos que se apresentavam, os modos de vida, as diversas culturas e as tantas histórias.
Já registrou mais de 60 povos, de visitas intimistas em terras indígenas a encontros em movimentos sociais, como o ATL – Acampamento Terra Livre e a Marcha das Mulheres Indígenas.
Suas lentes enfocaram com mais frequência, desde 2016, o povo huni kuin da amazônia acreana pelos laços que foram criados através do seu caminho espiritual e, desde 2019, os povos do Xingu e Rondônia pelo trabalho que vem realizando junto aos Doutores da Amazônia, que cuidam da saúde indígena no Alto Xingu, na terra dos Paiter Suruí e dos vários povos que vivem em terras distantes às margens dos rios Mamoré e Guaporé na amazônia rondoniense.
Saúde para todos
A jornada da ONG Doutores da Amazônia de levar atendimento médico de qualidade para o coração da floresta amazônica é um sonho que virou realidade e já impactou a vida de dezenas de milhares de pessoas. Afinal, sem saúde aos povos da floresta, não há floresta em pé.
“A saúde tem que chegar na ponta, tem que chegar para todo mundo. Não é justo que atendimentos especializados e de qualidade beneficiem somente uma parte da população”, destaca Caio.
O projeto “Levanta e Lute” tem, portanto, a missão de semear a mensagem sobre a importância de iniciativas em prol de populações em situação de vulnerabilidade. Parte da tiragem de 2 mil exemplares será destinada a apoiadores que fizerem contribuições para a ONG e o restante será distribuído em escolas, instituições do terceiro setor e para formadores de opinião, voltados ao fortalecimento à causa indígena e a da saúde.
Além do lançamento do livro, o projeto também é composto por um projeto pedagógico com jovens do povo Kalapalos, no Xingu, que teve início em junho deste ano.
Sobre Levante e Lute
Levante e Lute é um projeto cultural inspirado na ONG Doutores da Amazônia, liderada pelo Dr. Caio Machado, que há 15 anos tomou para si a missão de levar saúde de primeira qualidade para os povos mais distantes, povos das florestas – indígenas e ribeirinhos da região Amazônica. Essa história dará origem ao livro “Levante e Lute”, que traz um grande ensaio fotográfico de Cassandra Cury. O livro engloba uma ação educativa entre adolescentes de São Paulo e do Xingu MT e fala sobre o encontro entre as culturas, entre os doutores e os pajés, entre os médicos e os raizeiros, além de mostrar como os povos das florestas – indígenas e ribeirinhos, recebem os cuidados para a saúde e integram esses cuidados vindos de fora, com a sua sabedoria, que vem de séculos e séculos de uso das plantas da floresta e do mundo espiritual.
Mais informações podem ser encontradas no site do projeto: Link