A abrangência da Lei Maria da Penha gera divergências dentro do Judiciário, de acordo com magistrados consultados pelo G1. Enquanto alguns juízes entendem que a legislação vale para todos os casos de violência contra a mulher, outros consideram que ela só se aplica a relacionamento estáveis. Para que a situação seja contornada, magistrados defendem alteração na lei, que completa quatro anos no próximo mês.
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O conflito dentro do próprio Judiciário ficou escancarado por conta do caso envolvendo o ex-goleiro do Flamengo Bruno Souza, suspeito pelo desaparecimento da ex-namorada Eliza Samudio, considerada morta pela polícia. Eliza desapareceu enquanto tentava comprovar que seu filho era de Bruno. Quando estava grávida, ainda em 2009, Eliza havia pedido proteção policial com base na Lei Maria da Penha, mas uma juíza entendeu que não era caso para a aplicação da lei por não haver relacionamento, mas sim questão para vara criminal.
“Recebi da delegacia o registro de ocorrência com um pedido de medidas protetivas. Verifiquei no mesmo dia e vi que não era da minha competência porque a Lei Maria da Penha exige que a mulher tenha uma relação íntima de afeto duradoura. No mesmo dia encaminhei para o juízo competente que seria a vara criminal. Só cumpri o que está estabelecido na Lei Maria da Penha. Estou sendo criticada por ter apenas cumprido a lei”, disse a juíza já neste ano.
A lei, considerada um marco no combate à violência contra mulheres, diz que é considerada violência doméstica e familiar contra a mulher “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.
Para ser enquadrada na lei, a violência deve ocorrer “no âmbito da unidade doméstica”, “no âmbito da família”; ou “em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação” – clique aqui para ver a lei.
Para a ministra da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres da Presidência da República, Nilcéia Freire, a lei é clara sobre se tratar de qualquer tipo de relacionamento. “No artigo que define a abrangência, se define relações íntimas de afeto, mesmo sem coabitação. Isso está explícito, escrito na lei, e fica claro que essa foi a intenção do legislador, proteger também esse tipo de relacionamento [casual].”
Nilcéia afirma que a interpretação divergente ocorre por “machismo”. “Eu acho que um grande desafio não só para aplicação da lei mais efetivamente é desconstruir a cultura que alicerça a violência, a cultura machista, patriarcal, que aflora em diferentes circunstâncias. O personagem da tragédia mais recente, o goleiro Bruno, afirmou antes “Qual homem que nunca perdeu a paciência e saiu na mão com sua mulher?”. Ali, ele disse o que pensa. Aquilo encontra acolhida na cabeça de muita gente. Isso é o que faz com que a Justiça aja com resistência para aplicação da lei em algumas circunstâncias, a autoridade policial subestime a denúncia, achando que é briga de casal normal. (…) Isso é machismo.”
A ministra Nilcéia diz que o governo apoiará tentativas de deixar a lei mais clara para torná-la mais abrangente. “Evidentemente que uma lei, quando ela é elaborada, não está totalmente certa, terá falhas, mas que serão observadas durante sua própria aplicação. A vida é mais complexa do que às vezes o momento em que se faz uma lei. É claro que vamos receber muito bem qualquer iniciativa que vise o aperfeiçoamento da lei.” A ministra afirma, porém, que o momento de discutir qualquer mudança da lei é em 2011, na próxima legislatura, após o período eleitoral.
Um projeto em tramitação na Câmara dos Deputados, o 4367/2008 de autoria da deputada Elcione Barbalho (PMDB-PA), estabelece que o namoro, mesmo que já tenha terminado, também configura relação íntima de afeto. A proposta já foi aprovada na Comissão de Seguridade Social e teve parecer favorável do relator na Comissão de Constituição e Justiça em abril. Ainda precisa ser votada na comissão. Como tramita em caráter terminativo, se passar, segue para o Senado.
No entanto, o projeto não esclarece os casos de relações casuais. Com isso, na avaliação dos magistrados, o problema continuaria no caso da aprovação do projeto.
Sem unanimidade
De acordo com a juíza Adriana Mello, titular do primeiro Juizado de Violência Doméstica e familiar do Rio de Janeiro e que preside o Fórum Nacional de Juízes de Violência Doméstica e Familiar (Fonavid), não há unanimidade sobre a abrangência da Lei Maria da Penha no Judiciário.
“O próprio Superior Tribunal de Justiça (STJ) já proferiu decisões diferentes. A mesma turma entendia que relação de namoro casual estaria abrangida pela lei e que não estaria. (…) Essa posição ainda não é unânime. É preciso que a jurisprudência (conjunto de decisões sobre determinado tema) amadureça um pouco mais. Está tendo um pouco de confusão”, afirma Adriana.
Adriana explica ainda que há divergência sobre se crianças e idosas também podem ser atendidas pela lei. “A lei vem, na realidade, gerando polêmica. Há quem entenda que não se aplica à criança do sexo feminino, que não se aplica ao idoso, porque já existe o Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca) e o Estatuto do Idoso. (…) É uma lei recente, uma lei nova, uma lei de vanguarda, inovadora, que veio revolucionar todo um trabalho dentro do Judiciário. E ela tem que ser uma lei mais severa porque é uma ação afirmativa, para um grupo mais suscetível a sofrer violência.”
A Lei Maria da Penha prevê punição maior para o crime de lesão corporal do que o Código Penal. Ou seja, a pena para quem “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem” em condições normais é de três meses a um ano. Se for em contexto de violência doméstica, a prisão pode variar entre três meses e três anos. Conforme alguns magistrados, a pena mais branda é o motivo para advogados de acusados recorrem sob a alegação de que não se trata de caso enquadrado na Lei Maria da Penha.
Mudança na lei
A juíza Adriana Mello defende que haja mudança no texto da lei para deixá-la mais clara e evitar decisões divergentes. “Precisaria tornar a lei mais clara. Uma alteração legislativa para determinar que independe do caráter da relação, seja eventual ou estável.” Adriana afirmou que em novembro o fórum de juízes vai se reunir e vai propor alteração da lei. “Para que o juiz fique seguro ao proferir sua decisão. (…) Se a lei não for clara, tem que interpretar com convicção e o juiz tem esse direito. Se fundamentou e decidiu, tem que ser respeitado.”
O G1 consultou o site do STJ e achou pelo menos dois processos em que o tribunal superior decidiu que relação casual não justificava a aplicação da Lei Maria da Penha. “Se faz salientar que a aplicabilidade da mencionada legislação a relações íntimas de afeto como o namoro deve ser analisada em face do caso concreto. Não se pode ampliar o termo – relação íntima de afeto – para abarcar um relacionamento passageiro, fugaz ou esporádico”, diz uma das decisões.
Para o juiz Relbert Chinaidre Verly, da 13ª Vara Criminal de Belo Horizonte, uma das varas especializadas na Lei Maria da Penha, é preciso interpretar a lei. “O grande problema é que vamos achar decisões de todos os tipos. A questão é interpretar. Eu tenho aplicado para todos os casos, até ex-namorados. Em Belo Horizonte, vários juízes têm agido assim.”
Verly afirma que a Lei Maria da penha é “boa, mas existem lacunas”. “A intenção do legislador é boa, mas existem lacunas e depende da interpretação. E cada um interpreta de um jeito. Na hora que a discussão sedimentar, vai acabar com isso (cada um decidindo de uma forma).”
O magistrado Eugênio Couto Terra, juiz substituto do Juizado de Violência Doméstica em Porto Alegre (RS), diz não ter “a menor dúvida” de que a lei é ampla e se aplica a qualquer tipo de relacionamento.
“Claro que isso é uma questão de interpretação. (…) Em minha opinião, a lei veio trazer uma política de proteção a um grupo vulnerável. Mas acho que quanto mais a lei foi clara, quanto menos margem para interpretação, melhor.” Para Terra, seria importante a lei ser mais clara no sentido de deixar claro que é mais abrangente.
Vanessa Ribeiro Mateus, titular do Juizado Especial de Violência Doméstica e Familiar de São Paulo, relativiza e diz que só deve ser aplicada sempre que houver violência de gênero. “Na minha avaliação serve para toda mulher. Deve ser aplicada quando a violência ocorrer no âmbito doméstico, que convivam no mesmo espaço, no âmbito familiar ou numa relação íntima de afeto, independentemente do tempo que tenham convivido. Mas além de um dos requisitos, é preciso ter sido cometido por conta do gênero.”
“Nem toda a violência de um homem conta uma mulher é necessariamente de gênero. Se um homem entra em um bar e por algum motivo bate em um homem e uma mulher, que nem conhece, isso não é necessariamente questão de gênero. Mas como tudo, fica à critério do juiz a análise do fato concreto.”
Vanessa diz que soube de decisões em São Paulo de não aplicar a Lei Maria da Penha por ser um namoro ou caso de ex-namorada. “Mas acho que essa questão está cada vez mais pacificada. (…) A lei é boa, mas pode sim ser esclarecida em alguns pontos. Mas considero que depende do esclarecimento dos tribunais”, diz a juíza, que descarta a necessidade de alteração no texto da lei.
Maria Isabel da Silva, juíza titular do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Brasília (DF), é contra a opinião dos outros juízes ouvidos pelo G1. Para ela, o texto deixa claro que é preciso existir “relação íntima” de afeto.
“A lei, no artigo 5º, exige que a violência contra a mulher ocorra no âmbito da unidade doméstica, no âmbito familiar e na relação intima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida. Portanto é uma lei especial e tem destinatários certos. Incumpridos os requisitos, aplica-se o procedimento comum ou a Lei 9099/95 (Código Penal). O que buscou a lei, no meu entendimento, foi proteger a mulher hipossuficiente na relação intima de afeto, subjugada pelo seu ofensor, numa relação de dependência, seja econômica ou psíquica. Relações amorosas furtivas, sem nenhum traço de compromisso, não se enquadram na proteção da Lei Maria da Penha”, disse Maria Isabel.
Para a juíza, a lei não precisa de alterações. “Não há dúvida que a mulher unida por laços familiares ou civis ao seu agressor está amparada pela lei, sendo ela sua primeira destinatária. Outras vítimas de agressões, fora desse rol, dependerá da avaliação de cada caso pelo juiz e promotor.”
A conselheira Morgana Richa, presidente da Comissão Permanente de Acesso à Justiça e Cidadania do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), afirmou que o CNJ não pode controlar a autonomia dos juízes e que a definição depende da análise do caso concreto. Ela disse, porém, que o texto da lei pode ser “aprimorado”.
“No particular não há qualquer controle do CNJ. Ao contrário, o órgão deve preservar a independência funcional do juiz e a liberdade na formação do seu convencimento, pilar de sustentação do próprio estado de direito. Além da violência praticada no âmbito doméstico e familiar, a lei é clara quanto ao objetivo de proteger a mulher em situação de violência, comportando qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Os contornos em que se insere a valoração, para além do caso concreto, decorre de uma maturação do texto na sociedade e na sua aplicação, uma vez que a lei traduz a expressão do fato social, sendo sua consolidação um processo natural ao longo da vigência.”
Nova dinâmica
A promotora Márcia Teixeira, do Grupo de Atuação Especial em Defesa da Mulher (Gedem) do Ministério Público da Bahia, diz que a divergência dentro do Judiciário só acontece “quando o operador do direito age com conceitos do passado, já que as relações contemporâneas têm outra dinâmica”. “Hoje nós dizemos ficar, têm relações apenas de cunho sexual, tem casamento cada um no seu estado. Há uma dinâmica muito forte na forma de se relacionar. Há quem considere que relação de afeto precisa ser duradouro.”
“Uma turma do STJ decidiu que a aplicabilidade se deve em relações íntimas de afeto do namoro, que deve ser analisado o relacionamento duradouro. Mas isso não significa que nós todos que trabalhamos com lei devemos atuar dessa forma.”
Mais controvérsia
Embora o texto da lei deixe bem claro que se trata de uma proteção específica para mulheres, há casos registrados de aplicação das medidas protetivas previstas em lei para homens. Essa inversão, no entanto, é controversa no Judiciário. Isso porque a maioria dos magistrados entende que o texto foi feito especificamente para mulheres, que têm, na avaliação deles, mais vulnerabilidade à violência doméstica.
Por ser uma decisão nova dentro do Judiciário, juízes explicaram que não há posição formada sobre a aplicação da Lei Maria da Penha para homens nos tribubais superiores. No entanto, há expectatiiva de que as decisões de primeira instância que tenham beneficiado homens sejam revertidas.
Para a magistrada Morgana RIcha, do CNJ, diz que o texto é claro: “A lei é específica para a violência contra a mulher”.
Representação
Outro trecho da Lei Maria da Penha já está sendo questionado no Supremo Tribunal Federal (STF) pelo Ministério Público Federal. Isso porque a Lei estipula que, para os processos relacionados à lei terem prosseguimento, é preciso uma representação feita pela vítima. O problema, na avaliação do Procurador-Geral da República, é que isso é inconstitucional uma vez que é dever do Estado coibir e prevenir a violência no âmbito das relações familiares.
Os juízes afirmam que se trata de uma mudança positiva uma vez que muitas mulheres, mesmo agredidas, acabam desistindo de seguir com o processo por medo ou dependência do agressor.
Tramita ainda no Supremo Tribunal Federal (STF) uma ação declaratória de constitucionalidade (ADC) 19 para que seja declarada a constitucionalidade da lei. Isso porque há questionamentos de que a lei trata não deixa homem e mulher em condições de igualdade, como prevê a Constituição.
As duas ações estão com o mesmo relator, o ministro Marco Aurélio Mello, e não há previsão para uma decisão final.
G1