Dona Julieta da Cruz não sabe dizer quando nasceu – amigos e parentes, sem muita certeza, acham que já se passaram mais de 80 anos. Roupas marcadas pela poeira, dentes perdidos pela falta de assistência, ela reúne as forças que lhe restam para pedir pela vida de seus parentes.
“Aqui não tem água, não tem onde plantar. Onde é que nós vamos tirar nosso sustento? Quem tem criança pequena sabe que sempre vai precisar comprar um remédio, um calçado, mas daqui não dá para tirar mais nada”, relata ela.
Julieta e sua família são remanescentes de quilombo da comunidade de Lagoinha de Cima, no município de Chapada dos Guimarães. Como a deles, outras 15 famílias permanecem na região, esperando que a Justiça lhes devolva a posse de suas terras tradicionais, hoje nas mãos de fazendeiros.
A espera se dá, contudo, em meio a condições precárias. Nas terras que hoje ocupam – menos da metade do que já foi reconhecido pelo governo federal -, as manchas de fertilidade estão localizadas em áreas de preservação permanente. E o pouco que resta depende de irrigação para prosperar.
Um investimento impossível para quem custa a encontrar o que comer. “Não temos condição de puxar água lá de baixo. E não podemos plantar lá embaixo porque é proibido. Então, a gente não pode fazer nada além de esperar a chuva”, relata uma das lideranças da comunidade, o lavrador Pedro Fidélis Valentim, 67.
A escola que havia no local foi desativada há 15 anos. E a assistência médica é quase nenhuma, diz dona Evanilde Oliveira, 58. “Aqui não vem médico, nem dentista, nem ninguém. Se precisar de ajuda, tem que ir correndo para Chapada ou mesmo a Cuiabá”.
RETRATO – A situação vivida pelos moradores de Lagoinha de Cima não é distinta da verificada em outras 56 comunidades quilombolas de Mato Grosso. É o que mostra um levantamento preliminar produzido pelos ministérios do Meio Ambiente e Desenvolvimento Agrário, concluído em junho.
“Em muitos casos, falta organização política. Na maioria, porém, o que falta é a presença do Estado em relação à saúde e educação”, explica Fernando Francisco Xavier, representante do Centro Nacional de Populações Tradicionais (CNTP) do Ibama.
O Brasil tem mais de 700 áreas reconhecidas oficialmente como sendo quilombolas. Estimativas não-oficiais dizem que esse número pode ser superior a 2 mil. Em Mato Grosso, pesquisadores apontam a existência de pelo menos 90 comunidades – em números oficiais, 57, considerando o complexo de Mata-Cavalo, com seis núcleos, como um só agrupamento.
As comunidades estão distribuídas pelos municípios de Cuiabá, Vila Bela da Santíssima Trindade, Cáceres, Nossa Senhora do Livramento, Chapada dos Guimarães, Acorizal e Poconé – esta última concentra a maior parte, 28. São ao todo cerca de 2,5 mil famílias.
A renda é muito baixa, segundo o estudo, e se baseia principalmente em aposentadorias e programas como o Bolsa Família. “Chama a atenção o estado de isolamento e miserabilidade das comunidades negras remanescentes dos quilombos, em conseqüência dos processos de isolamento dos serviços públicos básicos da cidadania”.
O trabalho tem o objetivo de iniciar o processo de regularização fundiária das terras quilombolas, mas também se propõe a indicar ações ao Poder Público – o relatório preliminar será agora apresentado, em cinco encontros regionais, às comunidades quilombolas, que poderão apresentar sugestões e novas demandas.
“Os casos sugerem (…) medidas urgentíssimas para que se interrompa flagrante discriminação a que está submetido um contingente (…) para o qual a Constituição Federal define medidas especiais e diferenciadas de proteção”.
fonte:dc