Embora sem data de implantação definida, a iminência da obrigatoriedade da nota fiscal eletrônica tem gerado apreensão em alguns setores. O maior receio concentra-se no risco de paralisação da linha de produção, em razão de demora ou recusa para a liberação da nota eletrônica. O que mais preocupa as empresas é a possibilidade que a legislação dá às Fazendas estaduais de não permitir a liberação da nota em caso de irregularidade fiscal do emitente.
O receio é maior em setores que funcionam no “just-in-time”, sistema em que não há estoque e a interligação na cadeia produtiva (para o fornecimento de insumos) é precisa. Fabricantes de peças e montadoras temem que pendências tributárias impeçam a emissão da nota e, como conseqüência, a saída da mercadoria do estabelecimento.
Pesquisa recente feita pelo Sindicato Nacional da Indústria de Componentes Automotivos (Sindipeças) entre os seus mais de 500 associados indicou que 65% deles têm alguma pendência de pagamento de impostos.
Os tributaristas receiam que a exigência possa causar dificuldades semelhantes às enfrentadas pelas empresas na esfera federal para a liberação das chamadas certidões negativas de débitos. Esses documentos atestam o pagamento em dia dos tributos e são exigidos para contratação de câmbio, acesso a financiamento e participação em licitações públicas. A dificuldade em conseguir a certidão tem levado muitas empresas ao Judiciário ou a manter equipes dedicadas somente para o acompanhamento das pendências tributárias apontadas pela Receita Federal.
O problema é que a liberação da nota fiscal demanda uma rapidez muito maior do que a emissão da certidão negativa e dela depende a manutenção da linha de produção ativa. A Fiat diz que vê com bons olhos a implantação de uma nova tecnologia para a emissão da nota, mas não esconde seu receio. “A emissão eletrônica é, sem dúvida, um avanço tecnológico, tão importante como foi a urna eletrônica nas eleições do país, mas temos que ter cautela”, afirma o diretor de compras da Fiat, Vilmar Fistarol. O setor acredita que o problema maior seja em relação aos pequenos fornecedores com dívidas tributárias. “Há empresas com pendências fiscais”, lembra.
As pequenas empresas, boa parte de capital nacional, fornecem componentes para as multinacionais do setor de autopeças, que, por sua vez, montam os conjuntos como painéis e suspensão e os entregam para as montadoras. Uma falha na emissão de nota fiscal em uma das empresas comprometeria a produção em toda a cadeia restante. Segundo Fistarol, o “just-in-time” é aplicado em 45% do fornecimento nas montadoras.
Jerson Aluisio Prochnow, supervisor das notas fiscais eletrônicas para a Receita Federal em São Paulo, diz que, ao prever a necessidade de “regularidade fiscal”, a intenção foi a de impedir a emissão da nota em situações extremas, como as de empresas já baixadas no sistema ou sem a inscrição estadual. “Temos em relação à nota eletrônica um compromisso pelo desempenho para que não haja atrasos ou interrupções em hipótese alguma.”
O diretor-adjunto da diretoria executiva de Administração Tributária (Deat) da Secretaria da Fazenda de São Paulo, Newton Oller, explica que cada Estado deve definir o que entende por “regularidade fiscal”. “No caso de São Paulo, só serão negadas as emissões de nota fiscal eletrônica nos casos de cassação ou suspensão de inscrição estadual do emitente”, diz Oller. “A inabilitação da inscrição não acontece de uma hora para outra. Há todo um processo anterior em que a empresa tem oportunidade de se defender administrativamente.” Oller diz que, em relação à situação atual, a previsão não deve fazer grande diferença. “Atualmente a empresa já fica impedida de emitir a nota fiscal caso esteja com a inscrição suspensa ou cassada.”
Na prática, porém, muitas empresas hoje mantêm estoques de notas fiscais em papel previamente autorizadas, explica o advogado Waine Domingos Perón, do escritório Braga & Marafon . “Isso acontece com empresas que trabalham no “just-in-time” e também com aquelas sujeitas a encomendas repentinas ou sazonais. Geralmente o pedido antecipado para se prevenir contra a demora na emissão das notas”, informa. Como o sistema da nota fiscal eletrônica prevê a autorização online, não será mais possível à empresa dispor de um estoque de notas, o que, na prática, deverá causar um impacto quase que instantâneo no caso de cassação ou suspensão, o que impediria imediatamente a saída da mercadoria do estabelecimento.
Para Oller, as empresas de setores no sistema “just-in-time” devem se prevenir contra interrupções na aquisição de insumos acompanhando constantemente a situação fiscal dos fornecedores. “Essa é uma providência provavelmente tomada por todas as empresas em relação a suas relações comerciais. A nota fiscal eletrônica tem a vantagem de permitir essa verificação online e não mais manual.” Ao menos no setor automotivo, porém, a troca de fornecedores não acontece com facilidade, porque os contratos são de longo prazo e as peças são específicas, muitas vezes contando apenas com um fabricante.
O tributarista Júlio de Oliveira chama a atenção para o fato de que São Paulo, por exemplo, tem uma legislação rígida em relação à possibilidade de cassar ou suspender a inscrição estadual. “A lei deu muito poder à esfera administrativa para a inabilitação da inscrição estadual”, diz Perón. “O regulamento em vigor permite que as empresas tenham seu registro suspenso até mesmo em casos chamados de inadimplência fraudulenta”. Uma das hipóteses desse tipo de inadimplência, lembra Perón, é o débito tributário vencido, quando a empresa detém disponibilidade financeira. “É uma previsão muito aberta, o que dá à fiscalização o poder de caracterizar a situação como inadimplência fraudulenta ou não.”
O presidente do Sindipeças, Paulo Butori, diz que não consegue imaginar o que acontecerá se o sistema eletrônico não liberar as notas fiscais em razão de inadimplência das empresas com o Estado. “Se fizerem isso, vão matar uma grande parte das empresas desse setor”, afirma. O dirigente do Sindipeças argumenta que os débitos dos fabricantes de autopeças são assumidos. “Ninguém esconde do governo que está devendo.”
Fonte: Valor Econômico – Marli Olmos e Marta Watanabe