Medida anunciada pelo Banco Central do país não resolve a situação econômica, mas facilita o cotidiano da população
A crise econômica na Venezuela ganhou mais um capítulo após o Banco Central do país anunciar que vai cortar seis zeros da moeda corrente no país a partir de outubro deste ano. Além disso, o bolívar passará a ser chamado de bolívar digital.
O governo venezuelano adotou essa medida outras duas vezes. Em 2008, foram eliminados três zeros da moeda. Dez anos depois, em 2018, houve o corte de cinco zeros.
“A hiperinflação é a causadora dessa medida. A inflação acumulada em 2020 foi de quase 3.000%. Então, você perde os parâmetros e o papel moeda não consegue mais dar conta, porque as pessoas começam a levar cerca de 40 cédulas para fazer uma compra simples”, explica Rodrigo De Losso, Ph.D. em economia pela Universidade de Chicago e Professor Titular da FEA-USP.
De acordo com o especialista, embora a hiperinflação tenha impulsionado as autoridades venezuelanas a adotarem mais uma eliminação dos zeros do bolívar, essa estratégia não é efetiva no combate contra a alta dos preços no país.
“Essa medida pode ser entendida como uma acomodação monetária. O excesso de inflação torna os preços muito altos e obriga as pessoas a carregarem uma quantidade de notas muito elevada. Então, o corte de zeros é só uma estratégia para ficar mais confortável manusear extratos, preços e o papel moeda. Isso não tem efeito prático porque não é cortando zeros que se reduz a inflação”, ressalta o economista.
Origens e combate à hiperinflação na Venezuela
Após o final da Primeira Guerra Mundial, em 1918, a Venezuela, que tem as maiores reservas de petróleo do mundo, passou a centralizar as suas atividades econômicas quase exclusivamente na exportação do óleo.
Durante um longo período essa atividade rendeu bons resultados à economia do país. Entre 2004 e 2015, a Venezuela obteve com o comécio do petróleo 750 bilhões de dólares (mais de R$ 3,9 trilhões na cotação atual). No entanto, a partir de 2014, o preço do barril desaba juntamente com o ritmo da produção venezuelana do recurso mineral.
Com o abandono das atividades agrícolas e industriais do país devido ao foco quase exclusivo no petróleo, o país passou a depender cada vez mais das importações dos produtos essenciais para o dia a dia da população. Além disso, a dívida externa e os gastos públicos relacionados à segurança, educação e saúde seguiram aumentando ao mesmo tempo ao longo dos anos.
“O governo enfrenta um forte déficit fiscal, e diante disso tem duas alternativas: vender títulos públicos ou emitir moeda. Como ele está desacreditado, não consegue vender títulos públicos e, por conta disso, passa a emitir moeda. Essa emissão, somada com uma produção que está continuamente caindo assim como o PIB (Produto Interno Bruto), causa a hiperinflação”, afirma o docente da FEA-USP.
Segundo o economista, estimular a atração de investimento privado para gerar novos empregos e aumentar da captação de recursos é uma alternativa para controlar a inflação na Venezuela.
“As autoridades venezuelanas precisam, primeiramente, focar na diminuição do déficit público. Para isso, além da geração de empregos e o consequente aumento na captação de recursos, é necessário diminuir os gastos públicos”, completa Rodrigo.
Dolarização da economia e pobres milionários
Em um contexto de desvalorização do bolívar venezuelano, 1 dólar equivale a cerca de 4 milhões de bolívar. Como a moeda é continuamente desvalorizada, as pessoas precisam andar nas ruas com milhões em dinheiro para fazer qualquer tipo de compra, por isso criou-se a expressão “pobre milionário”.
O salário mínimo da Venezuela, por exemplo, é de 7 milhões de bolívares. Esse valor vale aproximadamente 1,75 dólares, cerca de R$ 9,12, em conversão direta.
Diante dessa constante desvalorização, não há vantagem em guardar qualquer quantia de dinheiro por longos períodos, o que leva muitas pessoas usarem o salário para comprar dólares e assim evitar a perda do valor tão rapidamente.
Salário mínimo de 7 milhões de bolívares na Venezuela equivale a cerca de 1,75 dólares
EFE/ RONALD PEÑA
“A moeda local não tem poder aquisitivo. Então as pessoas recebem o salário e se elas não o converterem em dólar rapidamente ele perde quase todo o seu poder de compra. Uma vez convertido em dólar, os indivíduos podem esperar mais tempo para consumir os produtos”, destaca Rodrigo De Losso.
O especialista ainda afirma que o corte de seis zeros anunciado pelo Banco Central não tem relação com esse processo de dolarização da economia. “Tanto a conversão para o dólar, como a eliminação de zeros da moeda são resultados da hiperinflação.”
Cortes de zeros no Brasil
O Brasil já passou pelo processo de corte de zeros das sua moeda em alguns momentos. Em 1942, 1000 réis passaram a valer 1 cruzeiro. Já em 1967, 1000 cruzeiros foram convertidos em 1 cruzeiro novo. Em 1986, 1000 cruzeiros viraram 1 cruzado.
Nas décadas de 80 e 90, por exemplo, a hiperinflação fazia com que os brasileiros tivessem de adotar a mesma estratégia dos venezuelanos atualmente: fazer a compra do mês exatamente no dia que os salários é pago.
Isso porque a inflação aumentava diariamente e isso fazia com que os preços de produtos e serviços essenciais subissem de maneira exorbitante dia após dia. Não era seguro guardar o dinheiro nos bancos e o poder de compra das pessoas poderia diminuir muito caso os valores não fossem gastos rapidamente.
A última reconversão da moeda brasileira que teve grande impacto na inflação do país foi a realizada pelo Plano Real, em 1994. Naquele ano, os valores em cruzeiro foram divididos por 2.750 e a nova moeda oficial do Brasil passou a ser o real.
Essa medida foi antecedida, em 1993, pela reorganização de gastos públicos e a desindexação de preços, que tinha como objetivo anular o reajuste de salários de acordo com variações da inflação, por exemplo.
Essa estratégia baixou a inflação do país rapidamente. Enquanto meses antes da adoção do Plano Real a hiperinflação ao ano girava em torno de 5.000%, no final de 1995 a inflação brasileira era de 22,4%.
“O Plano Real Brasileiro é um bom exemplo a ser seguido. Além da conversão do cruzeiro em real, o Estado conseguiu reorganizar os seus gastos públicos e em pouco tempo a inflação no país já estava controlada”, destaca o economista da USP.
R7 sob supervisão de Pablo Marques