As Reformas de Base apresentadas pelo então presidente João Goulart, o Jango, no mítico comício da Central do Brasil há 50 anos continuam tão necessárias quanto antes. Determinados temas continuam na boca de políticos, governantes, sindicalistas e estudantes, mas não saem do papel. Se propostas, como as reformas agrária, tributária, administrativa e eleitoral e, até mesmo, a remessa de lucros para matrizes multinacionais contidas no texto de Jango assustaram e aceleraram o golpe militar de 1964, hoje padecem no Congresso Nacional.
Professor de Relações Internacionais do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), Lier Pires Ferreira afirma que, se 50 anos depois os momentos são diferentes, os temas continuam atuais. Segundo ele, naquela época, Jango deu uma cartada política, “que foi malsucedida”. Mas o professor indaga: “Que país teríamos hoje se não houvesse o golpe?”.
Filho do ex-presidente, João Vicente Goulart lembra que o processo desenvolvimentista do país produzido por Juscelino Kubitschek — como a construção de Brasília — foi feito às custas da emissão de moeda, aumentando a inflação e deixando uma herança maldita para seu pai. No comício,Jango disse que sem as Reformas de Base nenhum governo poderia enfrentar o “monstro inflacionário” que devora os salários dos assalariados.
Lier Pires destaca que o processo inflacionário — 51% anuais no início de 1964 — derivou da combinação do descontrole das contas públicas somada ao endividamento externo, no período JK. “Havia um cenário de concentração de renda, forte demanda por salários maiores por parte dos trabalhadores, aumento dos preços devido à inflação e maior carga tributária para pagar a dívida externa. O impacto dos índices decorria da deterioração econômica”, recorda o professor, afirmando que no discurso da Central o ex-presidente dá uma guinada mais à esquerda.
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Pouco antes do comício, Jango assinara dois decretos: um permitindo a desapropriação de terras na faixa de dez quilômetros às margens das rodovias, ferrovias e açudes; e o outro, nacionalizando as cinco refinarias de petróleo existentes no país. No dia seguinte, outro decreto chamou mais atenção ainda: o tabelamento de preços de aluguéis e de imóveis.
Coordenador de Graduação e Pós-Graduação em Relações Internacionais do Ibmec-Rio, José Niemeyer diz que essas ações, no forte contexto ideológico da época (Guerra Fria), assustaram a classe média, que “tinha muito receio de uma república sindicalista” e ajudaram a definir o golpe: “Não foi uma agenda econômica e, sim, uma agenda doutrinária e de interesses de grupos empresariais que derrubaram Jango.”
'Patinávamos em cima da riqueza, e o povo não se desenvolvia'
Há 50 anos, Antônio Modesto da Silveira despertava esperançoso com os rumos do país. Na noite anterior, era um dos milhares de brasileiros que se entusiasmaram com as reformas prometidas por Jango na Central. Mas, ao mesmo tempo, sentia que havia uma conspiração contra o governo.
Modesto chegou ao Rio em 1948, filho de uma família de sem-terra do interior de Minas Gerais. Aos 87 anos, carrega as marcas da enxada muitas vezes empunhada, além dos ferimentos dos tempos como operário de fábrica. Em 1964, após conciliar emprego e estudo, era advogado formado na Universidade do Estado da Guanabara, atual Uerj. Durante a ditadura, usou sua profissão para defender presos políticos “de Belém a Porto Alegre”.
Na virada dos anos 1950 para 1960, ele diz ter ascendido para uma “classe média apertada” e lembra sem saudade das dificuldades que passou.“O preço de tudo disparava. A inflação chegou a 80% em um ano”, conta. Para Modesto, a construção de Brasília, no governo JK, fez o Brasil tomar empréstimos e ficar refém de empresas multinacionais. “Nós sabíamos que a inflação ocorria por razões concretas”, diz.
Segundo ele, quando Jango assumiu o poder, a situação econômica do país não mudou. “Não importava se era Getúlio, JK ou Jango: patinávamos em cima da riqueza e o povo brasileiro não se desenvolvia.” Para que mais brasileiros pudessem “trocar a botina pelo terno”, era fervoroso defensor das Reformas de Base: “Todos nós tínhamos esperança.” (Colaborou Leandro Resende)
'Ninguém festejou os milicos. Todos queriam era mais pão na mesa'
Em casa sem pão, todo mundo briga e ninguém tem razão. Ideologias à parte, foi a falta de comida à mesa do brasileiro que fez com que o povão aceitasse, silenciosamente, a queda de Jango da Presidência no golpe militar de 64. E ninguém estava aí para o novo regime de ditadura militar que se levantava. Aliás, pouquíssimos entenderam o movimento como tal. A população queria era mudanças, e já. Ainda menino, aos 8 anos, com quatro irmãozinhos, era eu quem ia de manhã cedinho, antes de o sol nascer, comprar mantimentos, carne (de segunda, quando tinha), pão e leite para a casa em região paupérrima de São Gonçalo. O leite, aliás, chegava de carroça em tonéis de alumínio e a gente tinha que ter em mãos uma garrafa vazia para acondicioná-lo. Para ter o pão, era mais fila e brigas e, na falta da carne, a mortadela era opção corriqueira. Morávamos com a minha avó paterna, que era auxiliar de laboratório, porque meu pai, balconista de uma loja de autopeças, com a crise se agravando, foi obrigado a dividir o mesmo teto com a mãe. Foi neste contexto, de miséria e de temores por convulsões nas ruas, pelo menos longe de abastados das zonas sul do estado, que os meus pais e a vizinhança pobre do bairro receberam, com alívio e esperança, a notícia da queda de Jango em 64. Ninguém festejou os milicos. Todos queriam era mais pão na mesa. – Roberto Pimentel, 57 anos, jornalista
Miro: "Era de alegria democrática o ambiente"
O deputado federal Miro Teixeira (Pros) era um repórter de 18 anos quando foi cobrir, pelo jornal 'A Noite', o comício do presidente João Goulart, o Jango, no dia 13 de março de 1964. Ficou num palanque montado especialmente para a imprensa ao lado daquele de onde Jango anunciou as Reformas de Base que a ditadura não o deixou implementar. E jura que não houve naquela reunião de mais de 200 mil pessoas, nem "briga", nem "empurra-empurra". "Era um ambiente de euforia", diz o parlamentar.
Miro conta que só viu, "discretamente", o policiamento da Polícia do Exército – os palanques foram montados em frente ao Palácio Duque de Caxias, que até 1971 foi sede do Ministério da Guerra.
"O povo estava na rua com o presidente da República em cima do palanque. Era de alegria democrática o ambiente em apoio a João Goulart. Não havia uma consciência de que dias depois haveria um golpe militar. A consciência de todo mundo era do absoluto poder do João Goulart. A informação toda era a de controle de João Goulart sobre os comandos militares. Ele tinha o domínio absoluto da situação", lembra Miro.
A única confusão que o deputado lembra foi causada por um grupo de petroleiros que chegaram para o comício com tochas acesas e cismaram de passar por baixo de faixas de trabalhadores de outros setores. Resultado óbvio: as tochas incendiaram as faixas, e o tumulto que houve foi causado por pessoas que correram para apagar o fogo.
Outra lembrança de Miro foi o grito que o mestre de cerimônias deu ao anunciar o discurso de Leonel Brizola, aliado e cunhado de Jango. "O cara gritou 'manda bala, Brizola!'", lembra Miro, rindo muito. O deputado é recém-chegado ao Pros. Antes, ficou anos no PDT, partido fundado por Brizola, e o plano era ir para a Rede Sustentabilidade, da ex-senadora Marina Silva. Como o registro do novo partido não saiu, Miro foi para o Pros para ser pré-candidato a governador do Rio, possibilidade que não havia no PDT.
ODIA
AURÉLIO GIMENEZ