Especialistas alertam que conflito deve se estender por mais um tempo e que o mundo precisa se preparar para um impacto econômico mundial
O conflito entre a Rússia e Ucrânia completa 100 dias nesta sexta-feira, 3, e o saldo deixado é devastador, não só para os ucranianos que já registraram, de acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 10 milhões de refugiados, contabilizando os que deixaram o país e aqueles que estão deslocados internamente, mais de três mil mortos e cerca de US$ 600 bilhões em prejuízo, como para o restante do mundo, que se vê em um cenário de escassez alimentar, altas nos preços de combustível e petróleo e desordem global. Apesar de os últimos dias terem sido mais frios no confronto, especialistas alertam que não se pode acostumar com esse cenário e que nos próximos dias já devemos voltar a ter uma nova escalada da guerra, que já está em seu quarto mês e mostra uma Rússia atolada no pior erro geopolítico cometido pelo governo de Vladimir Putin.
Para o professor de relações internacionais do Insper Leandro Consentino, as conclusões que se pode ter desses primeiros cem dias é o próprio tempo de duração do conflito. “Muita gente dizia que seria um passeio de menos de uma semana e chegamos a cem dias com a Rússia atolada na guerra”, explica. “O custo saiu mais caro do que Putin poderia imaginar”. Outro ponto importante que ele relata é que o plano do líder russo para enfraquecer a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), não deu certo e o que “ele conseguiu fazer foi deixá-la mais forte e atrair o interesse de outros países, como Suécia e Finlândia”, que sempre adotaram uma postura de neutralidade, mas, em decorrência do prolongamento do conflito no Leste Europeu, entregaram a carta de solicitação para ingressar na aliança. “A Otan, que estava perdida, ganhou uma nova razão de existir”, explica o doutor em relações internacionais Igor Lucena.
Entretanto, apesar dessas serem as consequências que “saltam aos olhos”, Consentino diz que existem outros fatores que não vão ser solucionados, como: os refugiados, a economia e a desordem da geopolítica global. “A invasão da Ucrânia pela Rússia não é apenas sobre a Europa, mas abala a ordem internacional”, disse recentemente o primeiro-ministro japonês, Fumio Kishida, cujo governo se associou às sanções ocidentais contra Moscou, particularmente financeiras. Todo esse confronto mexeu com as relações diplomáticas, e dois países se tornaram protagonistas: a China, que está sendo ambígua na guerra, e a Turquia, que ganhou destaque por se dar bem tanto com Putin como com Volodymyr Zelensky, e ser a peça chave para decidir se vai permitir o ingresso de Suécia e Finlândia na Otan ou não. Além disso, Consentino aponta que em breve ela terá que decidir entre se “aliar à Rússia e à autocracia ou ao ocidente, como vinha fazendo”.
Para Lucena, a guerra na Ucrânia é um dos “maiores erros geopolíticos do governo de Vladimir Putin”. Em cem dias, eles conquistaram 20% do território ucraniano, e as regiões controladas pelas tropas russas são “basicamente a região do Donbass até o sul da Ucrânia”, o que os aproxima da fronteira com a Moldávia, que também tem uma região separatista pró-Rússia. “Esse é o plano B. Ele não conseguiu dominar todo o Leste Europeu militarmente, então está tentando dominar as regiões com predominância russa”, pontua Lucena. Depois que retirou suas tropas da capital ucraniana no final de março, quando aconteceu a última reunião de negociação de paz, Putin informou que concentraria suas forças no leste do país. Atualmente, as tropas estão focando em Severodonetsk e Lyssychansk, os últimos redutos de Zelensky em Luhansk.
“O conflito armado deve continuar até o final do ano ou o próximo, porque não há interesse de nenhuma das partes em ceder”, explica o doutor em relações internacionais, acrescentando que “Putin não vai acabar com a guerra e o que podemos ver nos próximos meses é de fato uma invasão da Transnístria”, uma região separatista pró-Rússia que fica na Moldávia. Diante desses fatos, Lucena aponta que, diferente do que era dito em fevereiro, quando a “operação militar” foi lançada, “as forças russas não são tão evoluídas do ponto de vista militar quanto se imaginava”.
Na quinta-feira, 2, o presidente ucraniano afirmou que os russos ocupam “quase 20% do território ucraniano”. A porcentagem equivale a 125 mil quilômetros quadrados, que incluem a anexada península da Crimeia e o território controlado por separatistas pró-Moscou desde 2014. Apesar de parecer pouco para tanto tempo de conflito, Consentino ressalta a importância de analisar com cautela quando se fala nesse assunto, porque “se pensarmos na violação da soberania, é muito”, agora, “se imaginarmos o tamanho do poderio russo, um quinto em cem dias indica que eles não são tudo o que diziam”. Essa é a mesma linha de raciocínio para quando pensamos se há alguém com vantagem na guerra. Os especialistas falam que do ponto de vista bélico, é nítido que a Rússia é melhor, porém, com o constante auxílio que Ucrânia tem recebido dos países ocidentais, ela “se torna capaz de articular uma resistência importante”, diz Consentino.
Lucena aponta que a Rússia “não imaginava que seria alvo de tantas sanções conjuntas e que teria retaliação das empresas estrangeiras”, o que basicamente “tira o capitalismo ocidental do país” e, consequentemente, mexe com a economia e “gera o empobrecimento do país e da população, porque tira os russos de uma cadeia universal de valor e das relações internacionais de comércio”. Por isso, quando pensamos no ponto de vista econômico, por causa do apoio internacional e diplomático, “que também é importante neste momento”, afirma Lucena, a Ucrânia sai na frente.