Bem além dos salários, é a frustração de agentes da Polícia Federal com a falta de perspectiva profissional que leva à manutenção da greve da categoria . O grupo recusou a proposta do governo de aumento de 15,8% até 2015. O movimento expõe uma “guerra fria” cada vez mais evidente, que racha a corporação entre agentes, escrivães e papiloscopistas, de um lado, e delegados da instituição, de outro.
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Os primeiros veem uma desvalorização gradual e crescente da categoria desde que, paradoxalmente, passou a ser exigido o nível superior para ingresso, em 1997. Atualmente, seguindo uma hierarquia não declarada de rigidez quase militar, a maioria das funções de chefia cabem aos delegados – mesmo os mais modernos –, o que acaba por reproduzir um modelo militar, de hierarquia por cargo e não de subordinação.
Os delegados não abrem mão da hierarquia funcional. Para eles, a relação se assemelha, sim, à divisão entre oficiais e praças, nas Forças Armadas, e isso deve se refletir em salários diferenciados.
“Dá para comparar com o Exército: é como se um praça fosse ocupar função de um oficial”, afirmou ao iG o presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal, Marcos Leôncio Sousa Ribeiro, para quem o discurso dos agentes é uma “disputa de poder alimentada pelos dirigentes sindicais” e não representa o pensamento da base.
Insatisfeitos, eles reclamam de ser preteridos mesmo em funções em que têm muito mais conhecimento de causa do que os delegados. Na prática, são os agentes que tocam a maioria das investigações, fazendo as escutas, resumos e análises de informações. Formalmente, só um delegado pode presidir um inquérito: é ele que indicia, envia os documentos ao juízo, gere e responde pela investigação, em última instância.
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Porém mesmo em cargos em que não há inquéritos – polícia marítima, fiscalização, crime ambiental, canil, cadastramento de armas –, a chefia quase sempre fica com os delegados. Em muitos casos, um iniciante chega para comandar equipe com agentes de 15 ou 20 anos de experiência – o que também é fonte de insatisfação nas polícias civis brasileiras.
Na Rio+20, por exemplo, delegados sem especialização em operações marítimas dirigiram policiais experientes no núcleo marítimo. Uma ironia comum na classe é dizer que “na PF, não se faz concurso para o cargo de delegado, mas para a função de chefe”.
O presidente da associação de delegados não contesta essa visão. “É um concurso difícil e ele chega para dirigir, para chefiar uma unidade. A caneta dele tem responsabilidade, ônus e bônus. Se errar, todos caem em cima. O que não pode é o cidadão fazer o concurso mais fácil e, depois de estar na organização, querer mudar as regras do jogo. Não se trata da pessoa (do delegado), mas do cargo e da responsabilidade, independentemente da idade ou da experiência”, afirmou ao iG .
“Todos querem ser caciques e ninguém índio”, diz delegado
Agentes, escrivães e papiloscopistas dizem que a dificuldade de ascensão e desafios profissionais em funções de gerenciamento levam ao desestímulo. E também ao confronto, na maioria dos casos, na forma de uma guerra fria com os delegados.
Leôncio nega que agentes, escrivães e papiloscopistas não tenham cargos de chefia na instituição. Diz apenas que são em sua área, em núcleos operacionais, ou cartórios e do Instituto Nacional de Identificação, por exemplo. “Mas eles querem um agente como Diretor-Executivo, ou chefe do Combate ao Crime Organizado… Além disso, não são só delegados em cargos importantes: os coordenadores Administrativo, de Planejamento e de Orçamento e Finanças da PF são peritos, por exemplo.”
Leôncio reconhece, entretanto, que há poucos cargos de chefia na PF e é preciso aumentá-los para contemplar esses outros profissionais, assim como elevar seus salários, em “um justo pleito”. “Eles merecem ser valorizados, há excelentes profissionais, mas temos de ver quais são as atribuições de cada um. Não acredito em uma instituição em que todos querem ser caciques e ninguém índio.”
“Trava salarial” impediria que salário de agente supere o de delegado iniciante
As diferenças entre as duas categorias dentro da PF, cada vez mais distantes, refletem-se ainda na face mais visível, o salário. Hoje, os vencimentos de agentes, escrivães e papiloscopistas variam de R$ 7,5 mil (ao entrar) a R$ 11,8 mil (no último nível). O salário de um delegado de 3ª classe começa de R$ 13,3 mil a R$ 19,7 mil. E passará a variar de R$ 16,7 mil a R$ 22,8 mil, a partir de 2015, com o aumento escalonado concedido.
Os agentes atribuem à uma certa “trava salarial” o suposto impedimento de receberem mais – mesmo após 15 anos de serviço – do que os delegados em início de carreira. A “trava salarial” é outro instituto que não existe formalmente, mas que os policiais afirmam ter grande força na prática.
Eles alegam que demonstração disso é o fato de o aumento dos delegados de 3ª classe ter sido de 24%, em comparação aos 15,8% oferecidos aos demais, supostamente para inviabilizar que seja inferior ao dos agentes. Nas últimas semanas, fizeram pesquisa com delegados pelo País sobre sua opinião sobre a “trava”. Em alguns Estados, muitos declararam-se contra, outros não responderam, porém um sindicato de delegados teria enviado e-mail a seus integrantes pedindo que não se pronunciassem sobre o assunto.
Para o presidente da ANDPF, Leôncio, a “trava salarial” está definida na Constituição, que estabelece a natureza dos cargos públicos a partir dos concursos e do nível de responsabilidade e complexidade dos cargos. Segundo Leôncio, o Ministério do Planejamento não se convence de que as atribuições dos agentes (mesmo os especiais) são mais complexas que as dos delegados de 3ª classe. “O agente especial merece tratamento diferenciado em relação aos seus pares. Não posso pôr um especial no plantão, por exemplo.”
O delegado afirma que há muitas outras carreiras de nível superior em que também não há tratamento linear e citou a Justiça, onde juiz e chefe de cartório têm salários diferentes. “Não é a graduação, mas a responsabilidade do cargo. Professores com mestrado e doutorado ganham menos que agentes e delegados”, disse.
Diárias por operações fora do Estado aumentam salário
Para os não-delegados, o ideal seria que todos entrassem juntos na base e progredissem, assumindo chefias de acordo com a experiência e mérito.
Uma das compensações financeiras para os que se dedicam às investigações são as diárias, pagas àqueles que participam de operações em outros Estados – e variam de R$ 177 a R$ 220, dependendo do lugar.
Muitos se dedicam à investigação por acreditarem que é “uma cachaça”, viciante. Entretanto o desânimo é tão grande que há na classe um quase consenso de que, numa espécie de boicote aos delegados, os policiais devem passar a fazer apenas o trabalho mais burocrático de transcrever “grampos”, sem destacar, analisar e contextualizar informações coletadas.
Com a greve ininterrupta, poucas são as operações em curso da PF. Medidas cautelares e pedidos de interceptações não estão sendo feitos ou renovados. Outra tendência é a saída de agentes, que passam a trocar de carreira, por outras análogas, como a Abin (Agência Brasileira de Inteligência), cuja variação salarial é de R$ 12 mil a R$ 18 mil para função semelhante.
Raphael Gomide iG Rio de Janeiro