É fato que o Sudeste enfrenta desde o ano passado a pior estiagem de sua história. É também unanimidade entre especialistas a responsabilidade do governo Alckmin na falta de planejamento e gestão para lidar com a crise em São Paulo. Entretanto, não é apenas o Estado o responsável pelo cenário desolador no qual se encontram reservatórios como o Cantareira (com apenas 5,2% de volume disponível, já contando com a segunda reserva técnica, nesta quinta-feira) e o Alto Tietê (11%), os principais da Região Metropolitana de São Paulo. Gerenciadora do uso do recurso do governo federal, a Agência Nacional de Águas (ANA) também tem culpa.
A avaliação é do próprio Ministério Público Federal, além de unanimidade entre especialistas consultados pelo iG. "A esfera federal é tão corresponsável pela crise quanto a estadual. Por mais que os governos dos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro tenham se omitido, a política nacional de águas é coordenada pelo governo federal", diz Guilherme Dantas, professor do Grupo de Estudos do Setor Elétrico do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "A impressão que os governos estaduais passam é de que está tudo bem, mas temos rios interestaduais. Faltou uma diretriz federal tanto no que diz respeito à retirada quanto nas questões de obras e de política educacional."
Permissão para errar
Boletins Mensais de Monitoramento do Sistema Cantareira que fazem parte de ação elaborada pelo MPF mostram que seguidamente a ANA autorizou vazões maiores do que as previstas em uma tabela conhecida como Curva de Aversão a Risco (CAR) – metodologia com o objetivo de prevenir ou reduzir o agravamento da crise hídrica, garantindo um volume mínimo a ser obedecido, por meio do estabelecimento de retirada de água de acordo com o recurso que entra com as chuvas.
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"A ANA não tem como se eximir da responsabilidade. Ela é a responsável pelo gerenciamento. Quando, por exemplo, a Sabesp fez o pedido para usar a segunda cota do volume morto [em outubro], a empresa justificou o pedido apresentando cenários irreais. E a ANA foi conivente porque não exigiu da estatal a apresentação de um cenário realista, que não estivesse atrelado à certeza de chuvas", afirma o engenheiro e sanitarista José Roberto Kachel, que trabalhou na Sabesp por mais de 30 anos. "É uma omissão que a ação do MP destacou com todas as letras em sua ação. A ANA foi conivente com a Sabesp durante a crise."
Na página 78 do documento do MPF lê-se as palavras citadas pelo especialista, apontando que o Grupo Técnico de Assessoramento para Gestão do Sistema Cantareira (GTAG, conjunto de comitês criado para lidar com a baixa dos reservatórios, mas que acabou dissolvido devido a divergências entre ANA e DAEE) elaborou diferentes cenários de previsões para o volume de água.
"Os cenários elaborados no decorrer da crise hídrica de 2014 partiram de premissas irreais, considerando vazões de afluência muito superiores àquelas efetivamente verificadas, resultando em cenários futuros bastante otimistas em relação ao esgotamento do volume útil dos reservatórios, distantes da situação fática", diz o documento. "A utilização de tais cenários irreais pela ANA/DAEE foi deliberadamente adotada com um único propósito: evitar ou, pelo menos, adiar a imposição à Sabesp de redução de suas vazões de retirada e a imposição de medidas de restrição necessárias e compatíveis."
Ainda de acordo com o documento, caso fosse respeitada a retirada de acordo com a Curva de Aversão a Risco, de vazões afluentes relativas a 50% das mínimas da série histórica (de 1953), o Cantareira chegaria a maio deste ano ainda com 38 hectômetros cúbicos (cada hm³ equivale mil milhões de litros) da primeira cota do volume morto. A reserva, no entanto, secou em outubro.
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Agora, a previsão de estudos do Departamento de Recursos Hídricos da Universidade de Campinas (Unicamp) mostram que a segunda cota do volume morto do Cantareira deve acabar já em maio e a terceira, até meados do ano passado totalmente descartada de uso, não deve passar de outubro caso as chuvas não venham. Na prática, isso significa o fim do sistema, que não teria mais água disponível nem em seu volume morto.
"Todas as aprovações para o uso dos sistemas são conjuntas entre o DAEE e a ANA. Então é impossível retirar a responsabilidade federal do manejo da crise", explica Antônio Carlos Zuffo, chefe do Departamento de Recursos Hídricos da Unicamp. Assim como os outros especialistas consultados, ele cita o esvaziamento dos comitês de gestão de crise e a falta de transparência como principais responsáveis pela falta de ações.
"Onde existe gerenciamento bem sucedido, ele é descentralizado e participativo. Por isso são necessários os comitês de bacias. Mas no ano passado optou-se pela via do fracasso, do colapso, centralizando tudo nas mãos de dois órgãos, com informações vindas de cima para baixo e, consequentemente, pouco confiáveis, sem transparência", analisa Zuffo. "A responsabilidade de todos os envolvidos era procurar uma negociação que fosse menos dolorosa à população. Mas tudo o que tinha de ser feito de errado foi feito. E agora teremos de enfrentar esta situação."
, iG São PauloÚltimoSegundo