A exemplo do que ocorreu durante o ano passado, quando manifestações tomaram as ruas do país, impulsionadas pelo reajuste das passagens de ônibus, protestos já voltam a dar o ar da graça, mas, desta vez, tomam os corredores dos shoppings centers. Iniciados em São Paulo no fim de 2013, os "rolezinhos" chamaram atenção da opinião pública e já se espalham por todo o país. Neste fim de semana, dezenas de "rolezinhos" estão agendados nos principais shoppings de cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Aracaju e Goiânia e têm se mostrado cada vez mais como um movimento difuso e um desafio para governadores e prefeitos dessas localidades, ao explicitar um quadro crônico de discriminações racial e social no país.
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No Rio, três "rolezinhos" estão previstos para esse fim de semana. O que ganhou mais destaque foi o agendado para acontecer no Shopping Leblon, na Zona Sul da cidade, no domingo (19). Realizado em um dos shoppings mais luxuosos da cidade, frequentado principalmente por pessoas das classe alta e média alta, o evento ganhou destaque no Facebook e já reúne mais de 8.700 internautas confirmados. "Em apoio à galera de São Paulo, contra toda forma de opressão e discriminação aos pobres e negros, em especial contra a brutal e covarde ação diária da polícia militar no Brasil, seja nos shoppings, nas praias ou nas periferias", diz o texto de convocação na página "Rolezinho no Shopping Leblon".
A Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro informou nesta terça-feira (14) que os "rolezinhos" não são crime e que, por isso, a polícia não fará a segurança no Shopping Leblon. Ainda segundo a secretaria, a proteção do shopping deve ser feita pela segurança do próprio estabelecimento e a PM só deve ser acionada caso haja algum tipo de vandalismo ou outro crime. Além deste, outros dois eventos no Facebook estão agendados para o sábado (18), um no Plaza Shopping Niterói e outro no Shopping Ilha Plaza, na Ilha do Governador, que reúnem algumas centenas de pessoas confirmadas para cada uma das manifestações.
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Em São Paulo, berço dos "rolezinhos", mais três atos devem ocorrer durante o sábado. Um deles será no shopping de luxo JK Iguatemi, que obteve, no último fim de semana, uma liminar na Justiça paulista que autoriza a proibição da manifestação. Por conta da medida, um protesto foi marcado contra o estabelecimento, acusado de racismo pelos internautas. Na descrição do evento "Rolé contra o racismo", os organizadores criticam a liminar obtida pelo JK Iguatemi e a ação truculenta da Polícia militar durante "rolezinho" no shopping Itaquera, zona leste de São Paulo, no último dia 11. Outros dois estabelecimentos, o shopping Metrô Tatuapé e o shopping Center Norte, também receberão suas manifestações no sábado.
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Jovens de Belo Horizonte também decidiram fazer sua versão do protesto, e devem se reunir nos shoppings Pátio Savassi e Minas Shopping. O primeiro já soma mais de 700 confirmados no evento do Facebook. Em Sergipe, um evento no Facebook havia sido criado para promover um "rolezinho" neste sábado, no shopping Jardins, em Aracaju. No entanto, o criador do evento esclareceu que o evento era simbólico, para "provocar uma discussão" e promover o fim da discriminação racial, e ainda incentivou os internautas a realizarem seus "rolezinhos todos os dias".
A iniciativa dos "rolezinhos" deve chegar em Goiânia, também neste sábado. O shopping Flamboyant deve receber a manifestação, que contava com mais de 300 confirmados no evento do Facebook. O evento foi excluído pelo criador, e o motivo teria sido o monitoramento da polícia, que poderia gerar mais ações truculentas. O organizador, que não quis se identificar, ainda apontou que a presença de integrantes do grupo black blocs contribuiu para a decisão. Outro evento foi criado nesta quinta-feira (16), e já conta com centenas de confirmações.
Psicanalista analisa fenômeno dos "rolezinhos"
O psicanalista e gestor de carreira Eliseu de Oliveira Neto explica o "nascimento" dos rolezinhos como um movimento por busca de reconhecimento e liberdade para frequentar locais em que os jovens da periferia eram impedidos simbolicamente de ir. "Teve como objetivo permitir que jovens de diferentes classes sociais pudessem frequentar livremente locais tidos como de classe mais alta – no caso, um shopping -, sem serem reprimidos pelo simples fato de estarem dando uma volta na área – na gíria, dando um “rolé”, daí o nome do evento", explica.
Eliseu ainda aponta para uma "manifestação inconsciente" por parte dessa juventude da periferia e explica que a sociedade é pautada pelo consumo, e isso justifica a busca incessante por identificação e pertencimento por parte dos membros das classes mais baixas, o que torna os jovens mais confusos sobre seu papel na sociedade.
"Acho interessante porque ouço muita crítica, mas acho que tem uma manifestação inconsciente, sobre essa questão da invisibilidade do garoto da periferia. Ele se coloca como 'eu existo, eu estou aqui, e quero consumir'. Hoje, a economia gira em torno do consumo, o contato do governo com a população é através do consumo, pela redução de IPI, por exemplo. Mas parte da população diz 'eu não posso consumir'. São protestos, não sei se de maneira consciente, mas para os psicólogos é muito claro. Existe todo um estímulo ao consumo, mas esse jovem não tem condição financeira para isso, além de todo um processo da mídia para que ele compre. Esse jovem está confuso, ele não tem plenas condições de consumir e fica preso nesse meio-termo", analisa Eliseu.
E mesmo com capacidade de consumo, o que é realidade para a classe C do Brasil, a periferia ainda se sente à margem das classes mais altas. O psicanalista explica que, mesmo consumindo produtos e marcas de grife, os jovens da periferia não são identificados e reconhecidos pela elite, porque são perfis de vivência, personalidade e modo de viver diferentes, e isso ainda gera a distinção, explica Eliseu.
"O que eles fizeram é muito interessante: utilizar o próprio medo da classe média contra a própria classe média. Ela tem medo desse jovem, do seu modo de vestir, de se portar, do funk, ela se assusta porque não é o perfil dela, e o jovem está expondo isso. Eles estão se expondo, dizem 'eu também estou aqui, também consumo, por que não posso entrar [nos shoppings]?'. Quando vão em bando, é uma forma de proteção, porque, sozinho, ele está exposto, pode ser colocado para fora. Alguém disse para ele que ele não pode consumir isso ou aquilo e ele se põe contra isso. Recusar e impedir acesso a eles é crime, e essa segregação está sendo exposta. Foram construídos para eles templos de acesso, nas regiões populares, mas ele se pergunta por que não pode ir ao Shopping Leblon".
O psicanalista ainda explica o movimento do "funk ostentação", música feita por meninos da periferia em que aparecem exaltando seus artigos de luxo, desde carros e motos a relógios e roupas. Para Eliseu, o jovem traça uma relação direta entre o consumo e sua importância no meio em que está inserido.
"Daí vem o funk ostentação, que é sobre alguém da periferia que consome produto de elite, porque ele quer estar inserido naquele espaço em que essa marca coloca o jovem no imaginário popular. Aquilo que ele quer ter é do imaginário popular, que transforma esse jovem em pessoa melhor aos olhos da sociedade", finaliza.
*Do programa de estágio do Jornal do Brasil