Há 1 ano foi inaugurada a primeira fábrica de preservativos estatal brasileira, a Natex, localizada em Xapuri, no Acre, ao lado da Reserva Extrativista Chico Mendes. O projeto surgiu de uma ideia ousada: criar, a partir da valorização do látex extraído de seringueiras, melhores fontes de renda para as famílias que vivem na floresta. Além de impulsionar o desenvolvimento sustentável, proporcionando mais condições para os trabalhadores, a fábrica foi projetada também para ter papel estratégico no combate à aids e demais doenças sexualmente transmissíveis, assumindo toda produção dos preservativos distribuídos gratuitamente pelo Ministério da Saúde no Norte do País.
Para sair do papel, a proposta custou R$ 31,3 milhões, dinheiro tirado dos cofres dos Governos Federal e do Acre, e do Banco Interamericano de Desenvolvimento, mas, 1 ano depois da inauguração, a Natex ainda está longe de resolver os problemas da região como planejado. A demora em obter licenças fez com que o início da produção atrasasse e que nenhuma das metas anunciadas com orgulho pelas autoridades em 7 de abril de 2008 fossem cumpridas. Dos 100 milhões de preservativos previstos para o primeiro ano foram efetivamente fabricados cerca de 10 milhões. O número de famílias
cadastradas para vender o látex também foi bem abaixo do esperado, assim como a quantidade de látex comprada.
A fábrica completou o primeiro aniversário na terça-feira (7), com uma estrutura administrativa confusa, marcada pela contratação de funcionários temporários e terceirizados, e dificuldades com licitações. Em vez de 150 empregos diretos como previsto, foram criados 90, sendo que nem 15 vagas são de empregados diretos.
O quadro sombrio é completado por um acidente ambiental com o derramamento de 7,5 mil litros de látex com amônia em um açude próximo da fábrica em 22 de dezembro de 2008, dia do aniversário de 20 anos da morte do sindicalista Chico Mendes, assassinado em meio à luta pela defesa da floresta e das famílias que dela tiram o sustento.
É neste contexto que a Natex, que custou milhões para ser levantada, pode ser
repassada à iniciativa privada. Interessados em comprar a estrutura ou assumir a produção por meio de uma Parceria Público Privada (PPP) visitaram as instalações recentemente.
Seringueiros com aids
A política nacional de distribuição de preservativos é considerada estratégica pelos especialistas no combate à aids no Brasil. Apesar de a produção inicial ter sido bem abaixo do esperado, os primeiros lotes de camisinhas da Natex foram suficientes para abastecer todo o Acre. A expectativa é que os demais estados do Norte do País também passem a receber lotes assim que a fabricação for ampliada. O avanço pode ser decisivo para ajudar a conter uma tendência apontada pelas autoridades de saúde da região. “A aids está começando a atingir mais índios e seringueiros nas florestas. Temos procurado fazer um trabalho com as
populações mais distantes, mas existe essa progressão”, explica Francimary Muniz de Lima, chefe da Divisão de Doenças Transmissíveis do Acre.
A resistência de setores conservadores da sociedade à distribuição de preservativos é vista com preocupação por quem luta contra a doença no Norte do País. A Igreja Católica faz campanhas sistemáticas contra o uso de camisinhas. “Trabalhamos com saúde pública, não podemos pensar assim. Sexualidade é um direito de todos e hoje temos como evitar a contaminação de pessoas por uma doença que não tem cura”, diz a especialista do Acre, que demonstra preocupação de que, caso a fábrica seja privatizada, a administração passe a priorizar o lucro em detrimento de políticas de saúde.A transferência pode eliminar inúmeros entraves burocráticos como a necessidade de licitações a cada compra e viabilizar um aumento expressivo da produção, mas também pode complicar a situação de diversas famílias que se beneficiaram pelo investimento de milhões para a criação da fábrica. A compra de látex,
atualmente, não obedece a
regras de mercado. Com subsídios e um pagamento generoso, o produto é comprado dos
seringueiros por um preço até seis vezes maior do que o que outros trabalhadores do estado conseguem vendendo
borracha coagulada.
Não que a situação seja fácil para as famílias que dependem desta renda. O extrativismo, base da economia dos moradores da floresta, atravessa uma grave crise que sinaliza a falência do modelo sonhado pelo sindicalista Chico Mendes de sobrevivência a partir da extração do látex. Com a concorrência de seringais de cultivo, plantados em outros estados, e o surgimento de concorrentes internacionais na Ásia, os seringais do Acre entraram em franca decadência. A queda do preço da castanha, outra fonte de renda importante das famílias, agravada pela crise financeira
internacional, tornou a situação ainda mais dramática.
Caso iniciativas como a Natex não sejam fortalecidas e o conhecimento científico para o aproveitamento de árvores, animais, insetos e frutas da floresta não avance,
o Acre está condenado a virar um pasto gigante. Sem perspectivas de melhorar de situação financeira, muitas famílias de seringueiros passaram a apostar na derrubada da floresta para a criação de gado. A agropecuária foi incentivada durante décadas por sucessivos governos no estado e passou a ser vista como uma saída também pelos que vivem na mata.
Até mesmo na Reserva Extrativista Chico Mendes é comum ver cabeças de boi e grama onde antes havia árvores do tamanho de prédios. Frente ao avanço do desmatamento, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) fez uma megaoperação no final do ano passado multando 297 famílias que devastaram a floresta e ameaçando 33 de expulsão por terem trocado o extrativismo pela agropecuária.
A medida provocou reação imediata do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, que, em nota, acusou o órgão de ser omisso na fiscalização por anos e, de uma hora para outra, querer solucionar o problema expulsando as famílias.
“Vão querer resolver só na repressão? Não se pode só agir com base nos efeitos, há de se considerar a causa. É preciso valorizar o extrativismo, quem vive na floresta. A preservação não pode acontecer em troca da extinção da espécie humana daqui”, argumenta Dercy Teles, uma veterana que, além de presidir o sindicato atualmente, teve participação ativa quando os trabalhadores começaram a se organizar e Chico Mendes, então presidente do sindicato, foi assassinado.
FU/Daniel Santini e Lumi Zúnica