Há 28 anos, quando a produtora cultural Lu Mello e a atriz Claudete Jaudy se conheceram, o casamento entre casais homossexuais ainda soava como uma realidade distante. Depois de quase três décadas de lutas e avanços da comunidade LGBTQI+, elas puderam celebrar o acordo ao lado de outros 11 casais na 1ª Edição do Casamento Comunitário Homoafetivo.
Realizado pelo Conselho Municipal de Atenção à Diversidade Sexual (CMADS), com apoio da Prefeitura de Cuiabá, o evento marca um importante passo na jornada por igualdade social.
No Buffet Rose Capriata, na Capital, os pomposos vestidos brancos das noivas só eram ofuscados por seus sorrisos orgulhosos. Entre lágrimas e aplausos de familiares e amigos, elas selaram a união e compartilharam a alegria em noite de festa, na sexta-feira (28).
Na data, escolhida propositalmente pela organização, também é comemorado o Dia Internacional do Orgulho Gay. “Para nós, importância maior deste ato é assegurar nossos direitos, porque o amor não tem lei”, diz Claudete.
Lu lembra que elas se conheceram em 1991, por intermédio de um amigo em comum, durante um curso de teatro na Casa Cuiabana. A história de amor ganhou força com o apoio das famílias. “Sempre foi aberto para todo mundo e nossas famílias nos respeitam muito. Essa é a base. Se eles estão do seu lado, você consegue enfrentar o resto”, afirma.
Pelo salão, histórias diferentes se entrelaçam por dois fatores comuns: coragem e resistência. Exemplo disso é o casal Francisco Ribeiro Stetstski e Gilmei Stetiski. Juntos há pouco mais de um ano, o professor de Educação Física e o promotor de vendas decidiram aproveitar a oportunidade para realizar um sonho. “Sempre pensamos em casar, mas ainda havia barreiras. Para qualquer gay sempre há um pouco de medo com relação a reação das outras pessoas, mas seguimos em frente”, diz Francisco. Posicionamento compartilhado por milhares de homossexuais brasileiros.
Neste ano, o Brasil caiu de 55º para 68º como o país menos seguro para a comunidade LGBTQI+. “O Brasil é uma sociedade machista e homofóbica e temos que acabar com essa burrice. No século XXI, com celular e internet na nossa cara, não há porque mantermos essa mentalidade medieval”, comenta a atriz.
Neste contexto o presidente do CMADS, Valdomiro Arruda, explica que o projeto foi pensado para garantir a cidadania, resgatar a dignidade e ressaltar o combate à intolerância e ao preconceito. À frente do Conselho há quatro anos, ele planejava expandir as ações do órgão para além da organização de seminários e da Parada da Diversidade. Por isso, com suporte do prefeito Emanuel Pinheiro e da primeira-dama Márcia Pinheiro, encontrou na data uma oportunidade para realizar os matrimônios.
Os casais participantes tiveram que obedecer alguns requisitos, dentre eles a comprovação de carência financeira, caracterizando hipossuficiência, que é uma condição estabelecida na Lei do Direito ao Consumidor, pois não haverá custo para os noivos ou noivas.
Valdomiro conta ainda que as roupas dos noivos, os doces e a decoração são frutos de parcerias, firmadas especialmente com empresários LGBTQI+. “A maioria dos profissionais que proporcionaram essa festa são gays, nos unimos pra isso desse certo. Embora cada um tenha suas individualidades e seus próprios grupos, na hora de engajar para ajudar, a gente se une. E o resultado foi esse, uma festa linda, com tudo de primeira qualidade”, conclui.
Direitos Iguais
O casamento civil entre pessoas do mesmo sexo foi autorizado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em outubro de 2011. Antes, esse tipo de união era firmada apenas por um contrato estável. Sendo assim, a partir da decisão, os acordos passaram não só a reconhecer as uniões, mas a assegurar direitos como adoção, partilha de bens e a previdência, benefícios já garantidos na constituição à casais heterossexuais. Há ainda, contudo, obstáculos a serem superados.
É o caso de Josy Taylor de Souza e Jefferson de Souza, que se conheceram há quatro anos. De lá para cá, o relacionamento ficou firme e eles chegaram a tentar oficializar a união outras vezes, sem êxito. “Eram muitas exigências, documentos que nós não tínhamos, então acabamos desistindo. Demorou um pouquinho, mas valeu a pena esperar. “Foi uma correria grande, hoje já chorei o dia inteiro, nervosa, mas deu tudo certo.” diz Josy.
No caso deles, a burocracia impediu que a celebração acontecesse em outras oportunidades. Ela, que é transexual, celebra a oportunidade como o resultado de inúmeras batalhas travadas ao longo da vida. “Como eu já venho militando há anos, sei da dificuldade que foi para que conseguirmos esse direito. Por isso achei que agora era a hora de me beneficiar dos frutos dessa luta. A gente vem ganhando e temos que aproveitar”, disse.
Diferentemente de Josy e Jefferson, Claudete e Lu chegaram a assinar a união estável há alguns anos, mas que agora, na avaliação de ambas, há mais segurança e paz para viver e, sobretudo, para exigir respeito. “Tem um momento em que isso tem ser assegurado. Tudo que a gente construiu, tudo que adquirimos juntas… Por isso a iniciativa do Conselho junto à Prefeitura é importantíssima. Isso deveria estar acontecendo em todos os territórios do mundo, não só aqui”, comentou.
Políticas Públicas
Para além da celebração, a assinatura dos documentos traz visibilidade à causa LGBTQI+, refletindo na promoção de políticas públicas e de proteção à esta população. O ato tem significado ainda mais forte em Mato Grosso, um dos estados brasileiros onde há maior número de casos de violência registrados contra gays, lésbicas e transexuais. Só em 2019 foram registrados 9 assassinatos por motivação homofóbica.
É o que destaca o vice-presidente do Conselho Clóvis Arantes. “Pra nós é, simbolicamente, a reafirmação de tudo que já foi conquistado até aqui. Ou seja, quando o poder público diz que essa comunidade existe e tem direitos, a gente reforça que qualquer violência contra esta população será punida. Portanto, esse casamento diz à sociedade que nós também somos pessoas de direito.”
O posicionamento agora é amparado por lei, uma vez que, neste mês a maioria dos ministros do STF) considerou que a homofobia é crime, equiparando as penas por ofensas a homossexuais e a transexuais às previstas na lei contra o racismo. “A criminalização agora diz que não se pode ofender ou violentar simplesmente por sua opção sexual. É por isso que precisamos reafirmar a todo momento nossa existência,” diz Clóvis.
Esta era uma das principais reivindicações de militantes LGBT no país, o tema chegou à Corte por meio de duas ações, movidas pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) e o Partido Popular Socialista (PPS), em 2012 e 2013, respectivamente.
Para Claudete é impossível dissociar a experiência da causa política, especialmente no atual contexto do país. “É político, mesmo que a gente diga que não. É em causa da categoria. Todos nós lutamos por alguma coisa. Há 50 anos começou essa luta e uma hora vai ter que terminar e teremos todos os nossos direitos.”
Questionada sobre o próximo passo depois do casamento, responde com sorriso largo: “O próximo passo é viver intensamente todos os dias, como vivemos até ontem”, concluiu.