Pelo visto, o Papa Bento XVI não se intimidou pela polêmica causada por um dos documentos que publicou quando era cardeal. O Vaticano deve divulgar nesta terça (10) um novo texto no qual as conclusões do então cardeal Ratzinger sobre as demais igrejas cristãs são reforçadas: elas seriam, por assim dizer, organizações “incompletas” do ponto de vista da fé, enquanto a Igreja Católica seria a única a reunir todos os requisitos da comunidade fundada originalmente por Cristo e seus apóstolos.
Trata-se de um documento curto — três parágrafos introdutórios, mais cinco perguntas e respostas — com título prolixo: “Respostas a quesitos relativos a alguns aspectos da doutrina sobre a Igreja”. Conforme adiantou um portal católico de notícias, o italiano “Korazym.org” (www.korazym.org), bem como uma reportagem no diário italiano “Il Giornale”, o texto retoma o polêmico documento “Dominus Iesus”, de responsabilidade de Ratzinger, divulgado no ano 2000.
Assim como o “Dominus Iesus”, o novo texto também é obra da Congregação para a Doutrina da Fé, a antiga casa do atual Papa no Vaticano e o órgão responsável pela pureza teológica do catolicismo. As perguntas e respostas são assinadas pelo atual prefeito da congregação, o cardeal americano William Levada, e por seu secretário, monsenhor Angelo Amato, e chegam com a aprovação oficial de Bento XVI.
Foi no “Dominus Iesus” que Ratzinger se notabilizou por defender a posição de que os cristãos não-pertencentes à Igreja Católica estavam em situação “deficiente” ou “defeituosa” na sua busca por salvação quando comparados com seus companheiros católicos. Para muitos teólogos, a afirmação pareceu um retrocesso quando comparada às posições da Igreja no Concílio Vaticano II, o encontro que definiu os rumos do catolicismo no século 20 e iniciou uma abertura a mudanças.
No documento “Lumen Gentium”, promulgado pelo concílio em 1964, firmou-se a posição de que “a verdadeira Igreja de Cristo subsiste na Igreja Católica”. O termo “subsiste” passou a ser interpretado como um reconhecimento tácito de que outras comunidades cristãs também tinham parte na herança da “Igreja de Cristo”, embora o catolicismo fosse, por assim dizer, a principal remanescente dessa herança original.
Jogo de palavras
O novo documento, no entanto, deve declarar que seu propósito é apresentar “o significado autêntico de algumas expressões eclesiológicas [referentes à identidade da Igreja] usadas pelo Magistério [o ensinamento oficial católico] que são abertas a mal-entendidos no debate teológico”. Segundo o novo texto, a Igreja Católica deve ser considerada a única a possuir “todos os elementos da Igreja instituída por Jesus”.
É a presença de alguns desses elementos que, ainda segundo o texto, permite que os cristãos ortodoxos sejam considerados também membros de “igrejas”: eles teriam mantido a sucessão ininterrupta de bispos desde o tempo dos apóstolos (muitos dos quais supostos fundadores das igrejas do Oriente) e os mesmos sacramentos do catolicismo, como a eucaristia e a ordenação dos sacerdotes.
Como as igrejas surgidas depois da Reforma Protestante teriam quebrado essa “sucessão apostólica” e deixado de lado os sacramentos tradicionais, elas não poderiam ser consideradas igrejas verdadeiras, mas simples “comunidades cristãs”.
O que tudo isso significa, na prática? Em primeiro lugar, que a guerra de Bento XVI contra o relativismo continua firme. A divulgação do documento revela uma estratégia coerente do Papa para fazer da Igreja a portadora de uma referência religiosa e moral única, como guardiã da herança cristã. De acordo com esse ponto de vista, não se pode igualar todas as religiões cristãs e colocá-las no mesmo saco, sob pena de tirar dos fiéis (em especial os católicos, claro) uma noção clara e sem ambigüidades de qual é o caminho correto a seguir.
Em segundo lugar, reafirma-se a idéia de que o catolicismo é o único meio pelo qual se pode alcançar a salvação espiritual com a ajuda da fé em Jesus Cristo. Teologicamente, porém, isso não significa que os outros cristãos, ou mesmo os seguidores de religiões não-cristãs, estão automaticamente excluídos dessa salvação, mesmo que não se convertam ao catolicismo. Difícil de entender?
A explicação vem da idéia de “deficiência” ou “defeito” expressa pelo documento “Dominus Iesus”. A doutrina defendida por Bento XVI considera que os não-católicos teriam mais dificuldade (uma “deficiência” mais branda no caso dos cristãos, mais pesada no dos não-cristãos) para a busca do bem e da verdade que leva à salvação do homem. No entanto, se eles seguirem o caminho correto apesar disso, eles seriam, na prática, “adotados” por Cristo e pela Igreja. Resta saber se esse detalhe teológico será suficiente para evitar as reações entristecidas das igrejas protestantes, como as que se seguiram à publicação de “Dominus Iesus” no ano 2000.
G1