Por Matheus Pichonelli
A maior crise política do Brasil neste século, com consequências econômicas e jurídicas sentidas até hoje, foi detonada em um posto de gasolina a poucos meses da eleição.
Não, não falamos (ainda) da paralisação dos caminhoneiros ocorrida nesta semana, mas da deflagração de uma ação da Polícia Federal, em março de 2014, que cumpriu mandados de busca e apreensão no Posto da Torre, localizado a três quilômetros do Congresso Nacional.
Propriedade do doleiro Carlos Habib Chater, preso na ação, o local era a base das negociatas e dos acordos que deram origem à Lava Jato. Políticos de Brasília iam até lá para encher o tanque dos carros oficiais e, segundo o Ministério Público, abastecer os cofres com propina da Petrobras.
Quatro anos e 48 fases da operação depois, os postos de gasolina do país se tornaram, na última semana, um terreno, real e simbólico, do caos nacional.
A Lava Jato mudou o cenário político de 2014 para cá. Eleita naquele ano, Dilma Rousseff e seu partido, o PT, se enfraqueceram em meio às acusações que aceleraram o impeachment da presidenta e levaram seu maior expoente, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, à prisão, a exemplo de outros símbolos do poder à época, como o ex-todo-poderoso-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ).
Auxiliado pelo rei da auto-sabotagem publicitária Elsinho Mouco, Michel Temer assumiu o posto prometendo colocar o país “nos trilhos”. A analogia não tinha eco na realidade do país com a maior concentração rodoviária de transporte de cargas e passageiros do mundo.
Se alguém quisesse parar o país, estava ali, e não nas hashtags ou nas carinhas de vômito no Facebook, o mapa da bomba.
A crise de abastecimento que a revolta desencadeou tem explicação nas mudanças promovidas na Petrobras, símbolo da pujança nacional nas vacas gordas e da nossa decadência, nas magras. Mas não só.
O controle do governo sobre a petroleira em ano eleitoral, com presos represados e indicações de aliados que transformavam departamentos em feudos partidários, criou um nó econômico e outro moral. A companhia passou a acumular prejuízos e seus ex-dirigentes foram para a cadeia.
Como resposta, a empresa mudou sua política de preços, que desde 2016 passaram a ser reajustados com base na paridade com o mercado internacional. “A combinação do modelo de negócios, e essencialmente uma política de preços livre, vai gerar fertilidade para as parceiras que vamos fazer. Esse modelo de negócios tem que dar a perspectiva de que vai valer a pena investir nessa área”, explicou, certa vez, o novo presidente da Petrobras, Pedro Parente.
O problema é que, flutuando livremente, o preço disparou, o brasileiro sentiu no bolso e os trabalhadores de transporte, um dos setores mais precarizados da economia brasileira, decidiram ir para a briga.
Diferentemente de uma greve de professores, na qual os efeitos na formação de crianças e adolescentes de quem o país nada espera se não uma multidão de mão-de-obra barata demoram a ser sentidos, e as autoridades se sentem livres atiçar o porrete, a mobilização desta vez colocou o governo de joelhos.
Nos últimos dias, não teve quem não foi afetado diretamente pela greve, seja no trânsito, seja na fila dos postos e supermercados, seja no medo de que, de repente, faltasse alimento em casa.
Na fila do posto de gasolina, o cidadão comum era o tempo todo atravessado pelo noticiário recente: um presidente é acusado de beneficiar uma concessionária do porto de Santos em troca de propina; um ex-governador e agora presidenciável é acusado de receber caixa 2 da principal concessionária das rodovias mais caras do país; as investigações que começaram lá no posto de gasolina em Brasília resultaram na prisão de quem até então só circulava com carro oficial ou jatinho privado; e o dinheiro para investimento público que começam a cortar parece fossilizado nos elefantes brancos de uma Copa que se esborrachou nos 7 a 1.
Até aí, um país achincalhado, mas abastecido, é só um país achincalhado. Um país achincalhado com prateleiras vazias é uma fagulha num galão de gasolina.
Mais do que uma demanda, os manifestantes que pararam estradas e vias públicas exibiam raiva, uma raiva espalhada como metástase e canalizada de todas as formas. Muitos dos que aderiram à revolta não queriam sequer uma negociação com o governo. Queriam outro governo.
Como em 2013, há diferentes forças políticas dispostas a se apropriar do movimento para vender a leitura como quiser. Parte da esquerda se satisfaz porque vê o governo Temer alvejado. A direita intervencionista vê a chance de levar o rastilho de pólvora até Brasília e explodir o que resta do Estado democrático de Direito. Até mesmo os patrões de quem dá a cara a tapa veem na mobilização a chance de ganhar vantagens de um governo que imaginou ter resolvido a questão do déficit fiscal criando uma fórmula matemática para o teto de gastos e agora não tem mais de onde cortar sem se endividar ou apelar para as velhas pedaladas.
Para quem achava que bastava trocar o presidente do turno para estancar a sangria e colocar o país do concreto e do asfalto nos trilhos, a missão de amansar os ânimos populares não será nada fácil, como não será fácil (sejamos justos) a vida de qualquer governante de mãos amarradas diante de fenômenos cada vez mais complexos para as velhas ferramentas de controle.
Se antes bastava uma canetada, ela hoje quase não arranha dilemas contemporâneos como automação da produção, intensificação do uso da tecnologia controlada por gigantes do Vale do Silício, demanda por energia renovável, fluxos de capitais cada vez mais sensíveis e voláteis, trabalho imaterial, tensões geopolíticas a quilômetros de qualquer palácio.
No caso dos combustíveis, se o governo atende aos manifestantes, desagrada os investidores; se coíbe as manifestações, o Brasil vira cenário para o filme Mad Max; e se não coíbe, voltamos ao tempo das intervenções econômicas (as policiais o mercado tolera), e as ações despencam, como já acontece.
A degustação de colapso que os brasileiros engoliram na última semana é só a ponta do iceberg – ou de um galão de gasolina cheio até a tampa, para ficar em outra imagem – que o próximo presidente terá de desmontar. Do atual nada mais se espera, a não ser a passagem das horas.
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