“Respeito à Anistia” é um dos editoriais mais chocantes e reacionários já publicados pelo considerado jornal Folha de S. Paulo (19.03.12, p. A2). Não quero entrar nos aspectos ideológicos da questão. Como professor de direito gostaria apenas de tecer alguns comentários estritamente jurídicos. Não sabemos nada sobre o editorialista redator, mas temos plena consciência do seu profundo menosprezo pelo Estado de Direito vigente, que vem sendo construído (pedra sobre pedra) desde a Declaração de Filadélfia de 1944, o nascimento da ONU (1945) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
O editorial chama de “tentativa canhestra de burlar uma decisão do Supremo Tribunal Federal” a iniciativa de alguns Procuradores da República de denunciar militares por sequestros durante a ditadura militar (1964-1985). Nada mais infeliz e, até mesmo, do ponto de vista jurídico, revoltante.
Referido editorial ignora por inteiro, desde logo, que a decisão do STF que validou a lei de anistia de 1979 foi considerada, no plano internacional, destituída de eficácia por desconsiderar por completo as obrigações internacionais assumidas pelo Brasil que, para além de firmar vários tratados de direitos humanos, passou a se submeter à jurisdição do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, em 1998.
Como bem enfatizou a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em sua sentença de 24.11.10, que condenou o Brasil a apurar e investigar os crimes da ditadura, a decisão do STF é inválida porque não fez o controle de convencionalidade da lei citada. Houve um grave equívoco jurídico do STF, seja porque não deu o devido valor aos tratados internacionais, seja porque ignorou por inteiro a sólida jurisprudência da Corte Interamericana que considera os delitos dos agentes da ditadura como crimes contra a humanidade, que são imprescritíveis e não anistiáveis.
Mesmo as elites pensantes do Brasil juridicamente culto, em razão da sua tradicional formação legalista que vem da Revolução francesa, continuam ignorando a maior e mais profunda mudança que se deu na segunda metade do século XX na estrutura do Direito, que se tornou muito complexo visto que sobre as leis acham-se os tratados internacionais (STF, RE 466.343-SP), depois destes vem a Constituição Federal (assim como os tratados aprovados por quórum qualificado), depois dela vêm a jurisprudência interna e internacional e, acima de tudo, está o “jus cogens” universal.
O contundente e desconcertante editorial, como lição de direito, é um descalabro absoluto e acabado. Não é verdade que o STF “encerrou de vez, e para o bem da sociedade, toda polêmica sobre o alcance da anistia”. Nada está encerrado, diante da decisão da CIDH no caso Araguaia (24.11.10). O Brasil era livre para subscrever os tratados internacionais assim como a jurisdição da Corte Interamericana. Já que os subscreveu, agora deve cumprir suas obrigações (“pacta sunt servanda”). A denúncia dos Procuradores não foi feita “para burlar o entendimento do STF”, sim, para cumprir a obrigação internacional do Brasil de honrar a decisão da CIDH.
A ideia dos Procurados não “é engenhosa”, sim, cumpridora do que consta da sentença citada, que já fez coisa julgada. Com todas as letras a CIDH reafirmou a natureza imprescritível dos crimes contra a humanidade, incluindo os desaparecimentos de pessoas. Não se trata de “raciocínio tortuoso” nem de “subterfúgio”. Os denunciantes acham-se amparados em decisão definitiva da CIDH, que legitimamente condenou o Brasil a apurar e, se o caso, condenar os crimes da ditadura. A lei de anistia não tornou a apuração de tais crimes “uma página virada”.
Num total de mais de cem países, o Brasil é o único que ainda não resolveu adequadamente sua “Justiça de Transição” (da ditadura para a democracia). De todos os países vizinhos (Uruguai, Argentina, Chile, Peru etc.), o Brasil é o único que, nessa área, continua aferrado ao Estado de Exceção, para garantir a impunidade dos crimes contra a humanidade. Note-se que a Comissão da Verdade não tem poder jurisdicional. Logo, ela não substitui outras investigações e apurações dos citados crimes. Como se vê, do ponto de vista jurídico, o editorial citado é um descalabro. Que os estudantes de direito não tenham acesso a ele, pois do contrário vão aprender uma lição de direito totalmente enviesada e equivocada.
*LFG – Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes e co-diretor da LivroeNet. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).
Sandrine Gahyva
Assessora de Imprensa Curso Preparatório LFG (Anhanguera)