Utilizando de um espaço que deveria ser usado na defesa dos interesses nacionais, Janja usou dessa oportunidade para tentar se consolidar perante sua própria militância
Por Henrique Simplício*
Durante mais de um século, foi largamente discutido pela teoria política nacional como a sociedade brasileira parece ter uma grande dificuldade em separar o poder público dos interesses privados. Se pararmos para pensar bem, talvez este seja o maior dilema do país desde a instauração de sua República.
Como promover um espírito político comunitário e virtuoso em uma sociedade que parece ter sido forjada por uma briga de facções que tentam cooptar o Estado para implementar seus próprios interesses?
Desde nossa fundação, vivemos um claro conflito de valores, passando pelos portugueses, indígenas, jesuítas e, mais recentemente, reverberando nos políticos, nos flanelinhas, nos cuidadores de carros, sindicato entre tantas outras organizações civis.
Fica difícil afirmar que não existe na sociedade brasileira uma grande quantidade de grupelhos tentando dar uma dentada no Leviatã obeso e acamado chamado Estado brasileiro. Vivemos isso todos os dias e a última atuação pública da primeira dama nos revela como esse traço permanece vivo.
A senhora Rosângela Lula da Silva, mais conhecida como Janja, de alguma forma realizou conferências no fórum intergovernamental do G20. Digo “de alguma forma”, pois parece não ter uma explicação muito clara de como Janja tem ganhado tanta notoriedade nesse evento.
Colocando-se como uma autoridade, Janja parecia ser a dona da festa. Ela claramente atuou como organizadora, não somente representando o país, mas discutindo políticas globais-internacionais. Cabe a pergunta. Alguém sabe dizer o que teria feito a Janja para estar ali? Qual a contribuição acadêmica ou técnica relevante ela fez para receber tal oportunidade?
Na ausência dessas respostas, fica difícil de dizer que Janja só está lá pelo mesmo motivo que vemos um jabuti em cima do poste. Alguém colocou ela lá. E, para nosso transtorno, o carregador de jabuti é ninguém mais ninguém menos que nosso presidente da República.
Lula parece ter perdido qualquer resquício de bom senso nessa vontade de enfiar Janja em qualquer oportunidade. Fico me questionando se, no privado, e a Janja que torra a paciência de Lula para querer aparecer tanto ou se isso tudo é ideia dele e de sua assessoria.
Paralelamente, vemos também que parte dessa condescendência não vem apenas de Lula. Ao abrir os meios de comunicação percebe-se claramente uma assimetria em como noticiam tudo que Janja coloca a mão.
De alguma forma, a primeira dama parece ter se tornado uma entidade com poderes extraterrenos que ultrapassam e muito o que se esperaria de uma República. Abrimos as notícias e vemos analistas comentando sobre a declaração de Janja sobre isso ou aquilo, como se ser a Primeira Dama fosse um cargo público de altíssima relevância para a nação.
Afinal, o que seria do brasileiro médio sem saber, por exemplo, que a primeira dama, dona Janja, reuniu-se com a embaixatriz do Gabão para discutir a responsabilidade climática e o crédito de carbono, não é mesmo?
Dá até para esquecer que dezenas de milhões de brasileiros continuam sem saneamento básico, cagando no mato ou na beira do rio. Para ser justo, devo lembrar que essa tradição de transformar a primeira dama em papagaio de pirata não vem de agora.
Desde Temer, os nossos líderes do executivo parecem estar tentando empurrar pela goela da sociedade brasileira a ideia de que suas mulheres devem exibir suas honrarias para à sociedade.
Na mesma toada, Bolsonaro não ficou para trás. Tentando conquistar o voto feminino deu a Michele um protagonismo negado a vários ministros. E, agora, com Lula, parece que essa tradição veio para ficar. Felizmente, Dilma não nos deu esse desgosto com um “primeiro damo”.
Mas voltando a Janja, o que ela teria feito demais no tal evento? De repente ela poderia ter acalmado os ânimos no barril de pólvora que tem se tornado o mundo. Ou apresentando alguma análise econométrica que irá ajudar na economia de recursos e diminuir a extorsão dos impostos dos mais pobres?
Ou será que ela apresentou um plano para retirar o Brasil da rota da pobreza quando a bomba previdenciária estourar? Nada disso, meus caros. Janja simplesmente usou de um evento internacional para ofender uma pessoa. Mas calma que piora, não é qualquer pessoa.
Como se ela tivesse aulas na escola de diplomacia do bar do Tião, Janja simplesmente mandou o conselheiro do futuro presidente do Estados Unidos, parceiro da NASA e dono de diversas empresas do campo da tecnologia que atuam no Brasil, o senhor Elon Musk, ir se F****.
Mais ou menos como o gerente despreparado que é sobrinho do dono da empresa, vimos Janja representando o país no G20. O que a mulher do presidente está tentando fazer ao arrumar inimigos em um evento onde deveriam ser selados acordos internacionais, ninguém parece querer responder.
Utilizando de um espaço que deveria ser usado na defesa dos interesses nacionais, Janja usou dessa oportunidade para tentar se consolidar perante sua própria militância. E o pior, sem desconsiderar os riscos da manobra ou seus possíveis efeitos futuros para o país.
Na cabeça de militante do DCE de Janja, essa brincadeira não custa nada. Parece nem passar pelo seu radar que ela poderia colocar em risco o emprego de milhares de famílias além de marcar um alvo na testa de seu marido perante a maior potência mundial.
Em um ambiente saudável, o poder executivo deveria tentar ajudar ou ao menos criar um ambiente propício para que empresários possam criar novas vagas de trabalho, além de produzir riqueza.
Mas não. Sem nenhum respeito pelo país, temos agora que aturar a mulher do presidente arrumando confusão e ainda fazendo piada sobre o rapaz que tentou se explodir em frente ao STF.
Na cabeça de militante do DCE de Janja, essas gracinhas não custam nada. Talvez, do alto da sua torre de marfim, cercada de puxas-sacos, religiosos fervorosos da religião política chamada Partido dos Trabalhadores, essa brincadeira não tenha nada demais.
O preço será pago pela sociedade brasileira que não só é obrigada a aturar os arroubos do presidente como, agora, passa a ter que sustentar o jabuti em cima do poste.
*Henrique Simplício é doutor em Neurociências, é palestrante, escritor, autor e organizador dos livros “Pedagogia do Fracasso” e “Pedagogia do Sucesso” (volumes 1 e 2) publicados pela editora Ampla.