Se existe um país que melhor representa o dilema entre a busca prosperidade pelas economias pobres ou emergentes e o combate à mudança climática, este país é a China. Que, por sinal, desbancou recentemente os Estados Unidos do posto de maior emissor de gases de efeito estufa do mundo.
Juntos, China e EUA são responsáveis por quase metade dos lançamentos dos gases na atmosfera. O segundo não contou com a aprovação do seu Senado para assumir reduzir emissões. E o primeiro já deixou claro que, embora persiga a redução na intensidade de carbono na economia, não adotará medidas que possam prejudicar as suas robustas taxas de crescimento.
A postura das superpotências dá logo o tom da COP 16, a Conferência das Nações Unidas para o Clima, que começou ontem em Cancún, no México. Ou seja, são baixas ou nulas as expectativas de se chegar a acordos vinculantes -, ao contrário do que se vivenciou na COP 15, em Copenhague, em que a enorme esperança gerou uma proporcional frustração diante do fracasso do acordo.
Independente do que avançar ou não em Cancún, o bode ainda está na sala: países que hoje desfrutam de um nível de desenvolvimento e prosperidade historicamente alcançados sem limite às emissões têm o direito de defender limites para aqueles que hoje precisam de crescimento para alcançar alguma prosperidade (supondo, claro, políticas de distribuição de renda)?
A prosperidade sem crescimento é algo possível em países pobres e emergentes ou por enquanto factível apenas nos países ricos? Os atuais instrumentos da economia “verde” e suas condições de financiamento e desenvolvimento tecnológico conseguiriam atender a essa urgência social dos mais pobres com baixas emissões? Ao mesmo tempo, a biosfera não dará conta de atender à demanda de consumo se o mundo seguir o padrão dos ricos. Então, qual seria a alternativa?
Partiu justamente da China uma proposta nesse sentido, elaborada pelo grupo de pesquisadores da Academia Chinesa de Ciências Sociais – como relata, em artigo no Boletim da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica, Ricardo Abramovay, professor titular do Departamento de Economia da FEA, pesquisador do CNPq e coordenador do Projeto Temático Fapesp sobre Impactos Socioeconômicos das Mudanças Climáticas no Brasil. O artigo intitula-se “Reduzir a desigualdade entre os indivíduos para combater o aquecimento global”.
A proposta dos pesquisadores chineses é para a adoção de um “orçamento carbono”, que busque atender as necessidades básicas de todos os indivíduos do planeta (inclusive as futuras gerações, claro), considerando os limites da biosfera. Uma vez acordado o aumento aceitável da temperatura média no planeta – por exemplo, uma elevação de 2 graus até 2050 – é possível aplicar a proposta dos pesquisadores chineses, pela qual se define quem é superavitário e quem é deficitário em termos de carbono, considerando as emissões históricas.
Países cujos padrões de consumo basearam-se em altas emissões são hoje deficitários. Já países como a Índia são altamente superavitários, ou seja, suas emissões per capita estão muito aquém do que seria a média mundial. “O caso da China é interessante, pois, superavitária hoje, deve tornar-se deficitária no máximo em 2020,” observa Abramovay.
“Mesmo que este julgamento de valor possa apoiar-se em considerações científicas, ele envolve, antes de tudo, um tema de natureza ética”, escreve o professor, ao citar dois parâmetros fundamentais em que o raciocínio se apoia. O primeiro corresponde àquilo que já foi emitido no passado. Os pesquisadores chineses mostram que é realista tomar como ponto de partida o ano de 1900, pois não há grande diferença entre o nível de emissões registrado nessa época, por exemplo, o de 50 anos antes. O segundo parâmetro é o que se pode emitir daqui em diante, levando em conta quanto (e quem) já emitiu e qual o limite de emissões que não compromete de maneira catastrófica a própria reprodução das sociedades humanas.
“O mais importante nessa proposta é que ela sinaliza claramente para o fato de que o sucesso na luta contra as mudanças climáticas globais exige uma abordagem de natureza socioambiental”, conclui o professor.
Para ele, a proposta indica que é possível atender às necessidades básicas dos povos dos países desenvolvidos, aumentar a produção de bens e serviços para que o preenchimento destas necessidades chegue aos mais pobres, ao mesmo tempo em que se contém a elevação da temperatura.
“Mas, para isso, será fundamental distinguir o consumo dos bens e serviços necessários para uma vida social digna daquele que marca a suntuosidade e o desperdício. Reduzir a desigualdade entre os indivíduos é uma condição básica para o sucesso da luta contra o aquecimento global”, escreve.
Terra
Amália Safatle