Ao longe o que se vê são pequenos pontos em meio à poeira fina da estrada, seca há poucos dias. À medida que se aproximam, com suas bandeiras coloridas e camisetas amarelas, vão despertando a euforia dos devotos que aguardam ansiosos, em frente à igrejinha, a chegada dos cavaleiros de São Pedro. Assim tem sido há 11 anos, desde que a Cavalgada de Barão de Melgaço foi inserida na programação da centenária festa de São Pedro de Joselândia. Por quatro dias, o povo devoto não mede esforços para garantir uma grande festança em homenagem ao santo padroeiro da comunidade, localizada em meio ao Pantanal Mato-grossense, onde em época de cheia só se chega de barco.
Localizado a 180 km da capital mato-grossense, São Pedro de Joselândia é um distrito do município de Barão de Melgaço. Lá vivem cerca de 2,5 mil habitantes, sendo a maioria pantaneiros de nascença. O linguajar típico e os hábitos característicos não deixam dúvidas a respeito da naturalidade do povo. Por lá, quase todos, desde os mais novos, dominam a arte de cavalgar em meio a um dos mais exuberantes ecossistemas brasileiro.
Montados em seus cavalos pantaneiros, conhecidos pela resistência às condições adversas do Pantanal, mais de 50 cavaleiros e amazonas, adultos e crianças, partiram de Barão de Melgaço e percorreram em dois dias aproximadamente 100 km até chegar a São Pedro, passando pelas comunidades de Estirão Cumprido, Porto Brandão, Conchas, Capoeirinha e Fazenda Velha. Em cada localidade os fogos de artifício anunciavam a chegada dos participantes. Assim foi até a grande recepção, quando uma segunda comitiva de cavaleiros foi ao encontro dos que chegavam, trocaram as bandeiras dos santos padroeiros e promesseiros e, juntos, concluíram o último trecho da cavalgada rendendo graças aos santos em frente à Igreja de São Pedro de Joselândia.
“Essa cavalgada resgata a cultura da nossa gente, o cavalo é muito importante porque é o meio de transporte mais eficaz, quase todos nós temos. Com ele você sabe que a gente sempre vai chegar onde quer”, afirmou seo José Antônio, agente de segurança e um dos responsáveis pela recepção da comitiva de cavaleiros e organizador da cavalgada de São Pedro de Joselândia, que em setembro faz o retorno a Barão de Melgaço rendendo graças à Nossa Senhora das Dores, padroeira do município.
Valorização da cultura
Com a proposta de valorizar as mais diversas manifestações culturais do estado de Mato Grosso, a Assembleia Legislativa tem sido parceira na divulgação e cobertura de eventos que retratam a cultura de uma determinada comunidade, município ou região. A mesma atenção vem sendo dada ao turismo no Estado, que na maioria das vezes está associado a tais manifestações culturais. “Se nós não valorizarmos o que é nosso, como iremos cobrar que façam isso lá fora. A cultura e o turismo mato-grossense são atrações que encantam qualquer visitante” argumenta o primeiro secretário da Assembleia, deputado Mauro Savi.
Exemplo desse apoio é a cobertura realizada pela TV Assembleia à 11ª Cavalgada de Barão de Melgaço e à centenária Festa de São Pedro de Joselândia – distrito de Barão de Melgaço. A equipe de imprensa da Assembleia acompanhou todo o trajeto e, além de fazer a cobertura factual do evento, produzirá um vídeo documentário para eternizar uma das festas religiosas mais antigas do Estado que sobrevive graças à fé e devoção do povo pantaneiro.
É bem verdade que muita coisa mudou e, talvez por isso, a Festa de São Pedro para muitos não tenha mais o mesmo encanto de antigamente, na época dos lampiões e banhos de poços, que nem vai tão longe, tendo em vista que a energia chegou em Joselândia há mais ou menos oito anos.
Mas com a chegada da energia muita coisa mudou. O Cururu já não embala mais o levantamento do mastro, ritual quase que sagrado nas mais tradicionais festas religiosas mato-grossenses. Porém, o Siriri continua firme, com seu vigor e encanto, animando os bailes pantaneiros e fazendo a alegria dos participantes.
Seo Joaquim Barbosa aos 98 anos é uma das pessoas mais respeitadas da comunidade. Capelão por mais de 40 anos, possui lucidez e memória de causar inveja aos mais novos. Na falta de um padre, é o capelão quem conduz as rezas na comunidade. Devido a idade, passou o ofício à filha há oito anos, porém, não perde uma festança e, como profundo conhecedor da história de São Pedro de Joselândia, não hesita em fazer suas críticas inclusive, ao novo padre que congrega no município.
“Eu tô achando que não vai muito tempo, porque agora mudou, tá mudando. Porque diz que o padre veio aqui e mudou muita coisa e a comunidade não está de acordo. Então aqui o altar era todo forradinho, tudo limpinho né, bastante gente fazia promessa, fazia pedido, trocava de santo e deixava na igreja. E ele chegou e mudou tudo, não quer que tenha as imagens aí, não é pra ser forrado o altar. Antes era o padre Líbero, ele sempre vinha, nunca falhou e nunca fez essas exigências. Ele gostava de ver a união do povo, gostava muito. Agora esse chegou e quer mudar tudo. Por isso eu não sei se vai durar”, observa seo Joaquim.
Mas o desenvolvimento também trouxe muitas novidades. “Hoje tá muito diferente. Naquele tempo aqui era um lugar central. Agora hoje tá tendo trânsito. Naquele tempo era só carro de boi. Tudo o que precisava vinha do rio. As telhas para cobrir a igreja foram feitas aqui mesmo. No início a igreja foi coberta de palha. Quando não tinha igreja, a reza era na casa de cada juiz. Só sei que quando assustou estava pronto. Desde aquela época tem todo ano. Não falha. Naquele tempo, era Cururu. Era baile na sanfona. Aí depois já foi mudando para a música eletrônica”, relembra ao observar que, mesmo com as mudanças, não falta a uma festa.
Festança
O que não muda desde o início da tradição de São Pedro, que segundo seo Antônio Pedroso de Amorim (82 anos), vai pra mais de cem anos, é a devoção do povo e o empenho em realizar a festança. “Desde que me conheço por gente tem essa festa, meu bisavô já contava”, afirma.
Durante os quatro dias de festejos o festeiro muda para o local da festa. A cozinha, localizada atrás da Igreja, praticamente não para, pois durante o evento são servidas as três refeições diárias ao povo. Logo pela manhã as cozinheiras servem o chamado quebra-torto, seguido do chá com bolo. Enquanto isso as panelas já borbulham nos fogões caipiras cozinhando o almoço e logo em seguida, sem deixar o fogo apagar, seguem preparando o jantar. Pela facilidade e característica da região, a refeição é à base de carne de gado, que é utilizada para o churrasco, picadinho e o tradicional ‘vai e vorta’, um picado feito com pedaços maiores de carne macia. Para se ter uma ideia do tamanho da festa, nesta edição foram utilizadas 16 reses.
Toda comida e bebida servida são doadas pela comunidade. “As doações para a festa dependem muito do poder aquisitivo de cada um. A maior felicidade nossa é ver as pessoas saírem daqui felizes, mas infelizmente não temos muita estrutura ainda para atender todo mundo”, afirma o juiz da festa Gonçalo Benedito dos Santos (52 anos).
“Quando chega perto da festa a gente busca a esmola e junta para fazer a festa. Muitos dão arroz, dão açúcar, dão bezerro, aí os bezerros nós juntamos para comprar as vacas para matar na festa. Tudo é de graça”, afirmou ao observar que o auge da festa é sempre na virada do dia 28 de junho para o dia 29, quando é comemorado o dia de São Pedro.
O Cururu
O levantamento do Mastro é o ponto alto da festa quando se fala em fé e devoção. É nessa hora que os devotos rendem graças ao santo padroeiro e aos santos promesseiros. Antigamente o ritual era realizado ao som do Cururu. Hoje, porém, são poucos os cururueiros e nem sempre estão presentes nesse momento. Aos poucos então, o Cururu foi sendo substituído pelos hinos dos santos, tocados pela ‘bandinha’.
“Eu acho que tem que seguir o que era antes. Mudou muito porque antes o levantamento do mastro era só no Cururu, hoje não tem mais, hoje é só no hino. Os mais velhos vão acabando e os mais novos não seguem”, lamenta seo Gonçalo.
A mesma percepção tem seo José Leôncio Peixoto de Moura, o Zé Melado (62 anos), zelador da Igreja. Ele nasceu em Cuiabá, mas vive no Pantanal desde muito pequeno. “A festa representa uma tradição de nossos avós, de nossos pais que vêm batalhando aqui, segurando essa imagem. E a gente continua no mesmo pensamento de não deixar acabar. É uma herança de pai pra filho. A mudança que teve foi por causa do Cururu que tá acabando. Hoje tem meia dúzia de cururueiros só e não aguentam cantar a noite toda. Antes tinha 20, 30 que tocavam a noite toda. Mas a festa eu garanto pra senhora que nunca acaba”, assegura animado.
Mas, para além das mudanças que ao mesmo tempo em que desagradam alguns, agradam a outros, principalmente quando se fala em tecnologia, a cultura não é estática. Ela muda com o passar do tempo à medida que novos valores e conceitos vão se incorporando e transformando tradições e costumes. O que nos leva a concluir que qualquer sistema cultural está num contínuo processo de mudança.