Diversos casos de corrupção no Brasil envolvendo recursos do orçamento da União têm contornos parecidos. Muitas vezes, os escândalos fraudulentos até parecem um déjà vu, expressão francesa que significa “já ter visto”. Alguns exemplos claros, com estruturas semelhantes, foram os episódios dos “sanguessugas”, com a venda dolosa de ambulâncias; da construtora Gautama, apontada como a principal beneficiada do esquema de fraude em licitações públicas, e, ainda, do suposto desvio de recursos em obras de 114 municípios, algumas delas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), descoberto pela operação João de Barro.
Nos três casos ocorreu o seguinte: parlamentares apresentando emendas ao orçamento, funcionários do Executivo auxiliando ou se omitindo quanto à fiscalização na liberação dessas emendas, prefeituras e empresas privadas beneficiadas com a situação. Para fechar o ciclo, diversas empresas envolvidas financiavam campanhas eleitorais de forma a eleger parlamentares. A prática deu certo, ao menos até o momento em que a Polícia Federal, com ajuda do Ministério Público, entrou em cena para desbaratar os esquemas.
Segundo o ministro da Controladoria-Geral da União (CGU), Jorge Hage, há características comuns nos casos apresentados, no entanto, para ele, cada um tem suas particularidades. “Nem sempre há funcionários do Executivo envolvidos para ajudar na liberação de emendas. Muitas vezes, os recursos são liberados normalmente em blocos, não existindo a necessidade de ajuda nessa etapa”, destaca.
De acordo com Jorge Hage, nos casos de parlamentares honestos, o problema começa quando o dinheiro das emendas chega às prefeituras. “Aí é que começa a corrupção, envolvendo apenas pessoas da prefeitura, de empresas fornecedoras, empreiteiras, etc.”, frisa. “Há também casos em que as empresas entram em conluio sem a participação de gestores (mesmo os prefeitos)”, pondera o ministro.
Para o cientista político Leonardo Barreto, existe uma relação promíscua e antiga que envolve empresários, parlamentares e o Poder Executivo. “Os empresários ‘compram’ emendas, os parlamentares as apresentam na comissão de orçamento e o Executivo privilegia a liberação de verba para a sua implantação. Todo o processo é absolutamente viciado”, constata.
O cientista político e professor de Teoria da Corrupção da Universidade de Brasília (UnB) Ricardo Caldas afirma que uma reforma política precisa ser discutida. Segundo ele, as emendas parlamentares, por exemplo, viabilizam candidaturas de deputados e senadores, pois as empresas beneficiadas pela verba prevista apóiam os candidatos. “Grande parte dos políticos que estão no poder hoje são os sobreviventes desse sistema. Eles aprenderam a viver com esse mecanismo. Por isso, não há interesse da classe na mudança desses pontos. O orçamento também não pode ser muito flexível, pois em finais de ano, os recursos são liberados de tudo quanto é jeito”, argumenta.
Caldas acredita que o problema da corrupção no Brasil é endêmico e tem raízes culturais. Segundo ele, a formação do Brasil por meio do estado lusitano é marcado pelo patrimonialismo, situação onde não se consegue separar o bem público do privado. “Entre outros pontos, o ambiente no Brasil ainda é propício a corrupção. Não há um sistema forte para combater o problema. O sistema político também é frouxo, flexível, aceita a corrupção. Faz parte da nossa cultura o ‘rouba mas faz’ ou o pensamento de que ‘já tem alguém fazendo, por que eu vou fazer?’. Ainda há questão da alta impunidade”, relata Caldas.
Nos casos dos “sanguessugas”, da Gautama e da Operação João de Barro, tanto houve recursos de emendas já direcionadas desde a origem para a corrupção, com envolvimento de parlamentares, funcionário do Executivo, prefeito ou pessoa próxima e empresa que ganharia a licitação, como houve também situações em que a corrupção esteve limitada ao nível local, ou seja, prefeitura-empresa.
Como evitar
Para combater o surgimento de novos episódios, a CGU, órgão de fiscalização interna do Executivo, destaca o uso de ferramentas de tecnologia da informação que automatizam os processos. Outras medidas são o incremento da transparência pública e o estímulo à participação e ao controle social como, por exemplo, o Portal da Transparência e o Portal dos Convênios, previsto para ser implementado no começo de setembro. O novo site publicará todos os processos de celebração e execução dos convênios firmados pela União, inclusive, licitações realizadas por estados e municípios para aplicar os recursos recebidos.
Já na área de repressão, as principais medidas adotadas pela CGU são o envio de todos os relatórios de auditoria da Controladoria ao Ministério Público Federal e ao Tribunal de Contas da União, a instauração de processos administrativos disciplinares e as sindicâncias para apurar responsabilidades e aplicar sanções, além da instauração de processos para declarar inidôneas as empresas apanhadas nesses esquemas. A CGU já declarou inidôneas para firmar contratos com a administração pública a Construtora Gautama e todas as empresas do clã Vedoin (Planam, Klass, Sta Maria e Enir Rodrigues EPP).
Para Leonardo Barreto, o caso dos anões do orçamento, ocorrido em 1993, serve de jurisprudência para a análise dos crimes relacionados – envolvendo parlamentares por meio de emendas, funcionários do Executivo, prefeitos e empresas. “Desde esse episódio, mudou-se a forma como se organiza a comissão de orçamento do Congresso e modificou-se a legislação. Hoje, possuímos um sistema muito mais transparente e eficiente do que tínhamos naquele período”, ressalta.
O esquema dos anões do orçamento consistiu em parlamentares responsáveis pela elaboração do Orçamento Geral da União (OGU) utilizando-se de emendas para enriquecimento ilícito. Faziam parte da quadrilha governadores, ministros, senadores e deputados. Os envolvidos recebiam comissões gordas para favorecer empreiteiras e desviavam recursos para entidades de assistência social fantasmas. A maior parte dos integrantes era formada por parlamentares de pequena estrutura. Por isso, o título de anões do orçamento.
Leonardo Barreto sustenta ainda que o maior problema nos casos de corrupção é a impunidade, sobretudo, das autoridades envolvidas. “A sociedade deve estar absolutamente mobilizada para combater essa verdadeira chaga, exigindo, inicialmente, a realização de reformas que possibilitem o rápido julgamento e o cumprimento das penas. O sentimento de impunidade duplica a percepção da sociedade sobre a corrupção, prejudicando o funcionamento de todo o sistema político”, conclui.
Ainda há esperança
A população brasileira ainda acredita que a corrupção pode ser combatida. Pesquisa publicada no final do ano passado pela Universidade de Brasília (UnB) apontou que 84,9% da população confiam na redução da criminalidade. No entanto, o autor do estudo, Ricardo Caldas, acredita que a sociedade brasileira não é participativa e atuante. “No Brasil, as pessoas só tomam alguma atitude quando há interesse privado, como votação de aumento de seu próprio salário, 13º, etc. Não houve nenhum movimento, por exemplo, contra a corrupção, mesmo diante das últimas crises”, afirma.
De acordo com o estudo, o brasileiro também desconfia das punições impostas pela Justiça. Quase a metade dos entrevistados não confia nos juízes e 91% dos entrevistados acreditam que a Justiça não pune com rigor os políticos. Quase 80% dos cidadãos discordam do foro privilegiado a políticos e magistrados e defendem ainda que um candidato “ficha-suja” não pode concorrer à eleição.
O estudo aponta também que 75,5% da população brasileira confiam na Polícia Federal (PF), 52,7% no Supremo Tribunal Federal (STF) e metade não acredita no Poder Judiciário. A pesquisa, realizada com mais de duas mil pessoas de todo o país, foi realizada em agosto de 2007 e teve como principal objetivo avaliar a opinião dos brasileiros em relação às instituições de governo e a imagem do Poder Judiciário.
Veja, a seguir, detalhes das operações citadas.
Operação Sanguessuga
Venda de ambulâncias fraudulentas
Deflagrada pela Polícia Federal em maio de 2006, a operação prendeu assessores e servidores públicos acusados de superfaturar o preço das ambulâncias em até 110%. O prejuízo aos cofres públicos foi de R$ 15,5 milhões, segundo a CGU. De acordo com a PF, a empresa Planam – principal firma do esquema – entregava, na maioria dos casos, veículos com defeitos ou com equipamentos a menos.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF), investigações da PF, da CGU e da Receita Federal revelaram que os acusados montavam empresas fantasmas a fim de forjar licitações e vender ambulâncias e equipamentos de saúde por valores acima do mercado. A Planan não consta na lista de doadoras do TSE nas eleições de 2006. Para isso, utilizava empresas de fachada como a Santa Maria.
O esquema consistia no aliciamento de parlamentares pela família Vedoin para que apresentassem emendas destinadas à compra superfaturada de ambulâncias para municípios de diversos estados. Após receber liberação do Ministério da Saúde, os recursos eram repassados aos municípios que realizavam as compras superfaturadas das ambulâncias com dispensa de licitação.
Uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) foi aberta para apurar o caso e encontrou indícios contra 69 deputados e três senadores. Dois dos deputados acusados renunciaram. Dos 67 restantes, apenas cinco conseguiram se reeleger.
Operação Navalha
Esquema de fraude em licitações públicas
O caso veio à tona com a Operação Navalha da Polícia Federal em maio de 2007. A construtora Gautama foi apontada pela PF como a principal beneficiada do esquema de fraude em licitações de obras públicas. Entre os detidos na operação estavam o deputado distrital Pedro Passos (PMDB-DF) e Ivo Costa, então assessor do gabinete do ex-ministro de Minas e Energia Silas Rondeau, que renunciou ao cargo após a repercussão do caso. A empreiteira, comandada por Zuleido Veras, comandava o esquema de suborno e propinas para desviar verbas para obras de interesse da quadrilha. Em apenas um ano, a construtora desviou mais de R$ 100 milhões.
De acordo com a PF, a organização desviou recursos dos ministérios de Minas e Energia, Planejamento, Integração Nacional, Cidades e do Departamento Nacional de Infra-Estrutura de Transportes (Dnit). Também foram encontradas irregularidades em pelo menos cinco estados e dois municípios. Os presos na operação foram acusados de fraude em licitações, corrupção, tráfico de influência, superfaturamento de obras e desvio de dinheiro.
O grupo era organizado em três níveis, de acordo com a PF: no primeiro, atuavam pessoas diretamente ligadas à construtora Gautama; no segundo, estavam os auxiliares e intermediários, principalmente os responsáveis pelo pagamento das propinas e, no último, autoridades públicas que tinham a função de remover obstáculos à atuação da organização. Escutas da PF flagraram integrantes da quadrilha planejando golpe em obras do PAC e do Programa Luz para Todos.
Nas eleições de 2006, a Gautama doou cerca de R$ 350 mil a candidatos do PMDB, PSDB e PL (atual PR). No ano passado, foi criada uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara Legislativa do Distrito Federal para investigar os contratos firmados entre o GDF e a construtora Gautama.
Operação João de Barro
Fraudes em obras públicas, algumas do PAC
O esquema deflagrado em mais uma operação da PF com ajuda do Tribunal de Contas da União, em junho deste ano, envolve desvio de recursos em obras de 114 municípios de Minas Gerais, três no Rio de Janeiro, uma no Tocantins e uma no Espírito Santo. A investigação apurou o superfaturamento em diversas obras, inclusive parte delas integrantes do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), realizadas com utilização de material de baixa qualidade.
De acordo com a PF, a quadrilha desviava recursos repassados pela União aos estados, Distrito Federal e municípios em convênios ou empréstimos cedidos pela Caixa Econômica Federal e pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) nas chamadas transferências voluntárias da União. Por conta da fraude, sobrava menos dinheiro para a realização das obras, o que implicava em baixo padrão de qualidade. Algumas casas, inclusive, estavam com metragem inferior à determinada no projeto inicial.
O superintendente da PF em Minas Gerais, David Salem, declarou que os desvios de recursos chegaram a R$ 700 milhões. “Ocorre à liberação de emendas para determinado município. Empreiteiras com lobistas se articulam para ganhar a licitação. E o projeto não é implementado de forma padrão. O dinheiro que sobra é dividido entre os integrantes do esquema”, resumiu o esquema.
Para a PF, lobistas de construtoras, além de oferecerem pacotes completos às prefeituras (projeto básico, captação de recursos e obra), atuaram também junto a parlamentares, prometendo ampliação da base eleitoral em troca de emendas que garantiriam recursos para as ações nos municípios. O contato com servidores da Esplanada dos Ministérios foi pré-requisito para que o esquema funcionasse. O pagamento de propina também foi identificado nas prefeituras e no Congresso.
Amanda Costa
Do Contas Abertas