Num estudo enviado à Federação do Comércio de Minas Gerais (Fecomercio-MG), uma rede de eletroeletrônicos detalhou sua estratégia para enfrentar o aumento de 20% na carga de tributos estaduais em smartphones: repassou metade aos preços e a outra metade absorveu na margem de lucro. Apesar do esforço, as vendas despencaram 30% desde que o governo mineiro elevou o ICMS e encargos em 2015. Na prática, portanto, a arrecadação caiu. No Rio Grande do Norte, a alta do imposto estadual foi usada como uma das justificativas da Ambev para anunciar o fechamento de uma fábrica no final do ano passado.
No Rio de Janeiro, petroleiras foram à Justiça para evitar a cobrança de uma taxa criada pelo Estado que ameaçava a viabilidade da exploração. Em comum, os casos revelam a escassez nos cofres estaduais e a agonia dos governadores para evitar a falência da máquina pública em meio à recessão. A situação beira o limite. Na terça-feira 23, o Rio Grande do Sul tornou-se o segundo membro da federação a decretar estado de calamidade financeira, seguindo o Rio de Janeiro e levantando a dúvida: qual será o próximo?
As elevações de impostos em ao menos 20 Estados geraram impactos negativos no setor privado e, ainda assim, não foram suficientes para reverter o caos em algumas gestões. Atrasos de salários a servidores e a precariedade de serviços viraram cenas rotineiras em todo o País. Não por acaso, os dois Estados em situação de calamidade enfrentam crises na segurança, com aumento na violência e a dificuldade de manter o efetivo nas ruas &ndash faltam desde combustíveis para as viaturas até itens básicos nas delegacias.
Não podemos tapar o sol com a peneira: nosso Estado não consegue pagar em dia os salários de seus servidores, afirma à DINHEIRO o governador do Rio Grande do Sul, José Ivo Sartori (PMDB). Essa calamidade financeira também gera a calamidade na segurança, que é a maior preocupação dos gaúchos. No dia seguinte à apresentação de uma nova proposta de ajuste fiscal no Estado, com redução de empresas públicas e fundações, e a demissão de mais de mil servidores, um reforço da Força Nacional desembarcou em Porto Alegre para ajudar na segurança.
A crise no Rio Grande do Sul é histórica, mas se agravou com a queda das receitas na atual recessão. As despesas com a folha de salários consomem cerca de 70% das receitas e o crescimento das dívidas nos últimos anos levou o Estado a superar o limite de endividamento permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal, de duas vezes a receita líquida. O decreto de calamidade financeira permite flexibilizar critérios da lei e protege os gestores de eventuais inexigibilidades. No Rio de Janeiro, o status garantiu um reforço de R$ 3 bilhões do governo federal para a realização dos Jogos Olímpicos.
No Sul, como não há eventos programados, não existe a perspectiva de novos aportes. O Estado será beneficiado com uma pequena parcela do socorro de R$ 5,3 bilhões anunciado pela União a partir dos recursos com a multa do programa de repatriação. A proposta final está prevista para esta semana e deve trazer itens como o limite de gastos pela inflação passada, como o previsto na PEC dos gastos federal, o compromisso para reformar as previdências regionais, além de contribuições adicionais de empresas que se beneficiaram de incentivos que não foram avalizados por todos os Estados.
Governadores se reuniram no sentido de construir um pacto de austeridade para a retomada do crescimento, afirma à DINHEIRO o governador do Pará, Simão Jatene (PSDB). Esse ajuste é um passo adiante para a retomada do crescimento. Estados já haviam negociado neste ano uma revisão nas condições de pagamentos da dívida com a União, repetindo uma cena da década de 1990, quando a gestão de Fernando Henrique Cardoso federalizou as dívidas dos Estados e interveio nos bancos estaduais, como o Banespa e o Banerj, privatizando-os em seguida. A proposta de revisão atual está em tramitação no Congresso e deve incorporar as contrapartidas negociadas no socorro.
O Ministério da Fazenda vinha evitando liberar recursos adicionais aos Estados para não comprometer ainda mais a situação fiscal da União, que deve ter déficit de R$ 170,5 bilhões neste ano, e não enviar um sinal de que o cofre federal está à disposição, como no passado. Cedeu pelo temor das consequências da crescente onda de manifestações e insatisfação nas regiões mais problemáticas. Entre os analistas, a percepção é de que as cenas poderiam acabar contaminando ainda mais a confiança e atrasando a retomada.
Não dá para pensar que o governo federal está se ajustando e os Estados, não, afirma Zeina Latif, economista-chefe da XP Investimentos. Quando a gente discute essa armadilha em que o país caiu, de inflação e recessão, os Estados também têm parcela de culpa e têm de ajudar. Num movimento estratégico, a ideia é ganhar força também na tramitação do ajuste federal, com mais pressão nas bancadas regionais. Há um compromisso de que nós continuemos lutando pelo ajuste fiscal e apoiando fortemente o governo federal na reforma da Previdência, afirma à DINHEIRO o governador de Santa Catarina, Raimundo Colombo (PSD) Vamos construir um ajuste fiscal permanente. É necessário tomar essas atitudes.
A situação dos Estados vem se agravando nos últimos anos. Puxado por um forte avanço na folha de pagamentos, as despesas subiram num ritmo superior ao da arrecadação. Rio de Janeiro e Minas Gerais, por exemplo, elevaram o custo com os servidores &ndash entre ativos e inativos &ndash em quase 70% de 2009 a 2015. Esse avanço vinha sendo coberto por receitas extraordinárias e operações de crédito &ndash só o Rio de Janeiro tomou R$ 17,6 bilhões no período, o equivalente a 36% da receita corrente líquida do Estado. A torneira do crédito se fechou e, ao mesmo tempo, receitas como os royalties do petróleo começaram a cair.
Na hora que não há mais receitas extraordinárias, fica claro que as despesas estão lá em cima e as receitas correntes estão em baixa, afirma Ana Carla Abrão, secretária da Fazenda de Goiás. É uma situação que se desnudou do dia para a noite, mas efetivamente vem de uma trajetória de desequilíbrio de muito tempo. Mais do que o custo da dívida, o peso da folha de pagamento, principal item da despesa na maior parte dos Estados, somado à queda da receita, é o que tem provocado a falta de disponibilidade para honrar salários e quitar pagamentos a fornecedores.
Nos casos mais graves, é o que explica também os decretos de calamidade. No Rio Grande do Sul, os salários representam aproximadamente 75% da despesa total e quase metade é destinada ao pagamento de inativos. A Previdência é um problema comum a todos. No Rio de Janeiro, a proposta de aumentar a contribuição no pacote de ajuste foi rejeitada em meio às manifestações de servidores. Assim como os dois, Minas Gerais aparece como candidato provável a um pedido de calamidade. Pela metodologia do Tesouro Nacional, o gasto com pessoal em 2015 beirava os 80% e o endividamento se aproximava do limite permitido pela Lei de Responsabilidade Fiscal.
Mas os dados mostram uma quadro de piora generalizada. Quatro Estados hoje têm classificação de risco D (RJ, RS, GO e MG) e não há nenhum com a nota A. Em 2013, eram dois classificados como A e nenhum como D. Na quinta-feira 24, o Conselho Monetário Nacional (CMN) autorizou 14 Estados com notas B a tomar R$ 7 bilhões em empréstimos, com garantia do Tesouro Nacional. O dinheiro será usado obrigatoriamente para investimentos. Classificado com a nota C&ndash, São Paulo não terá acesso ao benefício, o que levou o governador Geraldo Alckmin a se reunir com Meirelles na sexta-feira 25.
Não é possível descartar novos decretos de calamidades também entre os representantes do Norte e Nordeste, que são mais dependentes de transferências federais. Na renegociação das dívidas, em setembro, 14 governadores ameaçaram oficializar a medida. Em Estados como o Rio Grande do Norte, o tema voltou à mesa diante da falta de recursos para pagar o 13º salário e de greves de policiais. Não se trata de um problema restrito aos Estados. Ao menos 18 municípios já decretaram calamidade financeira.
Enquanto as receitas não se recuperam, a saída encontrada por governadores e prefeitos é adotar uma agenda de reformas, com privatizações, concessões, além de redução de despesas. Os Estados não emitem dinheiro, então nosso ajuste tem de ser mais rápido do que a PEC dos gastos, afirma o governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (leia entrevista no link abaixo). Se nada for feito para barrar o apetite insaciável dos governantes, a agonia fiscal, como sempre, acabará no bolso do contribuinte.
Colaborou: Ary Filgueira
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Confira a entrevista na íntegra com Paulo Hartung-Istoé