Mais da metade das córneas captadas no Brasil para transplante são descartadas. Tecido sem qualidade e hepatite B respondem por 66% dos casos de descarte.
É o que revela um levantamento inédito da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que avaliou dados dos 42 bancos de tecidos oculares do país.
Esses serviços são responsáveis por todas as etapas que antecedem o transplante de córnea: da busca, triagem clínica e retirada do globo ocular do doador morto à avaliação, preservação e envio do material para cirurgia.
Em média, 12 mil transplantes de córnea são feitos por ano no Brasil, a maioria no Estado de São Paulo-que praticamente zerou a fila de espera. Porém, há pelo menos 23 mil pessoas esperando, em média três anos, pela cirurgia em outros Estados.
Das 21.012 córneas recolhidas por esses serviços no ano passado, 51% (10.817) foram para o lixo. Ceará e Goiás foram os Estados com o maior índice de descarte.
São Paulo, que responde por 58% das córneas disponíveis no país, descartou 52% do que coletou. Nos outros países, a média de descarte de córneas é de 40%, conforme a literatura médica.
Renata Parca, gerente substituta de tecidos, células e órgãos da Anvisa, afirma que o primeiro relatório teve o objetivo de retratar a situação dos bancos de olhos no país para, depois, a agência estabelecer indicadores de qualidade comparáveis.
“Estamos validando os dados para chegar numa média aceitável [de descarte]. Se essa média girar em torno de 45%, aquele banco que tiver um descarte de 80% ou que tiver 10% tem problemas a serem corrigidos.”
Segundo ela, há muita desigualdade regional tanto no descarte de córneas quanto em relação à infraestrutura dos bancos de tecido ocular.
HEPATITE B
Um terço das córneas jogadas fora tinha o vírus da hepatite B. A doença foi a principal causa de descarte em 9 dos 17 Estados avaliados (veja quadro). Os tecidos também são testados para o vírus HIV e da hepatite C.
Dados recentes do Ministério da Saúde mostraram que, nos últimos dez anos, foram confirmados no país 96.044 casos de hepatite B. As regiões Sul, Centro-Oeste e Norte tiveram as maiores taxas de detecção da doença.
Segundo o oftalmologista Elcio Sato, um dos coordenadores da ABTO (Associação Brasileira de Transplantes de Órgãos), além do perfil regional da hepatite B, suspeita-se que seu alto índice entre os doadores de córnea seja porque os exames de sorologia apresentam muitos resultados falso-positivo.
Sato diz que isso poderia ser resolvido com testes mais eficazes na triagem das córneas, como o NAT (Nucleic Acid Test), que reduz a “janela imunológica” em relação aos testes de anticorpos e evita casos de falso-negativo.
“Estamos estudando isso com a Anvisa. Hoje, preferimos pecar pelo excesso de zelo. Na dúvida, não liberamos o tecido. É melhor continuar com saúde, mesmo não enxergando, do que pegar uma doença”, diz Sato.
O transplante de córnea pode corrigir doenças como ceratocone (que altera a curvatura da córnea) e perda da visão causada por traumas, queimaduras químicas, herpes e distrofias, que deixam a visão embaçada.
Outro documento da Anvisa mostra que 59% dos bancos de tecidos oculares são considerados de médio risco e 41%, de baixo risco. O ideal, diz Renata Parca, seria que todos fossem de baixo risco.
Entre as falhas estão as de documentação ou de registro dos serviços (56%), infraestrutura física (20%) e operacionalização, como irregularidade nos exames (16%).
F.COM
CLÁUDIA COLLUCCI
DE SÃO PAULO