A guerra pode ser a salvação para os norte-coreanos, escravizados pelos japoneses durante a II Guerra e depois por seus próprios líderes, a dinastia Kim. Para os coreanos em geral, terá, obviamente, um custo terrível. Para o mundo, será um tranco danado.
Mas a hipótese de uma escalada catastrófica que levaria a uma intervenção da China, a terceira maior potência dos nove países que têm armas nucleares, é relativamente exagerada.
Os riscos não podem ser minimizados, mas também não devem ser superdimensionados. Isso costuma acontecer porque, de certa maneira, como os generais, muitos analistas também “lutam a última guerra”. Ou seja, aplicam as lições do último conflito a uma situação que parece replicá-lo.
Existem, evidentemente, muitos paralelos com o conflito que começou em 1950 e, de várias maneiras, continua até hoje. O mais impressionante é o da “auto-contenção”, a opção política do presidente Harry Truman para não bombardear o Exército do Povo, que havia entrado diretamente na Guerra da Coreia, e, principalmente, não usar bombas atômicas para virar um jogo que parecia perdido.
Detalhe importantíssimo: em 1950, só os Estados Unidos tinham bombas de plutônio operacionais. A União Soviética havia feito o primeiro teste nuclear um anos antes, mas não tinha como lançá-las.
Casus Bellum
Truman, que havia autorizado as bombas de Hiroxima e Nagasaki para obter uma rendição que, com armas convencionais, teria causado enormes baixas entre os americanos, seguiu a política de autocontenção na Guerra da Coreia.
Exatamente o mesmo termo foi usado pelo atual comandante das forças americanas na Coreia do Sul, general Vincent Brooks, para explicar o único motivo pelo qual ainda não foi desfechada uma ação militar contra o Norte.
A justificativa para o casus bellum é a sequência de testes com mísseis usados como veículos para bombas nucleares. O ápice foi o foguete que voou durante 40 minutos, habilitando experimentalmente o regime de Kim Jong-Un a atingir o Alasca.
O limiar é inadmissível para os Estados Unidos e ponto final. Quem quiser, pode ficar discutindo se é certo ou errado. Mas a realidade não vai mudar por causa disso. Kim Jong-Un recebeu todos os avisos, os alertas, as advertências, as ameaças. Outros ainda serão feitos, em termos mais urgentes. Não ouviu nem ouvirá? Que aguente.
A divisão da Península Coreana em dois países é a única que persiste no mundo pós-Guerra Fria, como aconteceu com a unificação da Alemanha, ou guerra quente, no caso do Vietnã.
Monstro preferido
A separação foi consequência da II Guerra, que chegou ao fim com uma área de ocupação americana, o sul, e outra sob controle soviético, ao norte. O avô do ditadorzinho atual, Kim Il-Sung, com 26 anos de exílio, tinha sido criado pelos soviéticos e escolhido para dominar a Coreia liberada por ninguém menos que Laurenti Beria, o monstro preferido de Stalin.
A propaganda soviética também produziu o mito de uma luta heróica contra o domínio do Japão, instaurado em 1910 e levado a extremos de brutalidade, incluindo a escravidão sexual, quando o império entrou no conflito mundial. Na verdade, Kim Il-Sung havia lutado com forças chinesas contra os japoneses, não em solo pátrio.
A associação da ideologia comunista com nacionalismo independentista aconteceu em vários países, mas na Coreia do Norte produziu um regime bizarro que viria a romper com todos os aliados comunistas, embora continuasse recebendo ajuda soviética até o fim. Literalmente, 1991.
A Coreia foi também o único caso em que um levante comunista-nacionalista redundou em guerra direta com os Estados Unidos, embora com mandato da ONU (no Vietnã, os americanos davam “assessoria militar” ao governo do Sul).
Por ordem da URSS stalinista e de um novo líder supremo chinês chamado Mao Tsé-tung, sob o comando de Kim Il Sung, forças norte-coreanas e chinesas invadiram o Sul. Os americanos, desmobilizados, só não levaram uma sova maior porque o general Douglas MacArthur sabia uma coisa ou duas sobre guerra.
General estressado
Só não sabia seus limites: entrou em tantas brigas com o presidente Harry Truman, que foi demitido, em pleno conflito, no maior caso de confronto entre um presidente americano e um dos generais mais estrelados – e estressados – da história. MacArthur queria bombardear diretamente a China e usar armas nucleares.
Foi este o caso que também produziu a melhor frase de Truman, um político sem carisma que havia assumido a presidência pela primeira vez com a morte de Franklin Roosevelt duas semanas antes da rendição da Alemanha, em 12 de abril de 1945.
“Eu não o demiti porque ele é um filho da mãe tapado, embora ele seja”, disse Truman sobre o legendário general. O termo usado não foi exatamente filho da mãe.
A autocontenção de Truman, praticada também em nome da preservação de vidas americanas, redundou na transformação da divisão provisória em permanente. Kim Il Sung transformou-se numa espécie de ditador por direito divino, usando mitos religiosos para fundamentar um totalitarismo de matriz racial.
Gênio da Filosofia e Gênio da Música foram alguns dos milhares de títulos criados para ele e, depois, transmitidos para o filho, Kim Jong-Il. O povo, doutrinado em padrões que fariam o ápice do maoísmo parecer uma sociedade libertária, só tinha uma opção: obedecer. E louvar a própria miséria como um padrão de vida sem igual no mundo todo.
Mortos de fome
Uma rápida comparação. Quando, com o fim da União Soviética, também acabou a mesada dos estados-clientes, Cuba entrou no “período especial” de falência alimentar. Os cubanos emagreceram em massa, mas o regime forçado diminuiu em até a metade a morte por doenças cardiovasculares e diabetes tipo 2, associadas à alimentação. Na Coreia do Norte, o número estimado dos mortos de fome, pelo mesmo motivo, é de 500 mil.
Mas até pelos padrões norte-coreanos de lavagem cerebral a figura de Kim Jong-Il é associada, mesmo que nos mais profundos recônditos, à grande fome dos anos 90. É por isso que seu filho, o baby Kim, procura acentuar a semelhança física com o avô – inclusive, plantam os sul-coreanos que monitoram os irmãos inimigos, com cirurgias plásticas.
Kim Jong-Un também tem um programa de obras públicas vistosas e obras privadas mais visíveis ainda, como mandar matar o tio, por rivalidade política, e o irmão que vivia exilado, mas poderia ser uma alternativa de poder.
Mas seu projeto mais espetacular é o da aceleração do programa nuclear bélico, iniciado pelo pai. A cada novo teste, Kim e seus generais são fotografados em poses efusivas, dando risada. Depois do ateste com o míssil que voou 940 quilômetros sobre o mar, ele mandou dizer que haveria mais “pacotes de presente”, grandes e pequenos, para “os ianques”.
Donald Trump pôs na mesa uma série de argumentos para a China cortar as linhas vitais que permitem ao baby Kim sobreviver e ainda tripudiar. O novo presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-In, também tentou uma política de acomodação, mandando suspender a instalação dos mísseis interceptadores americanos que incomodavam a China.
Existe ainda espaço para uma saída diplomática? Acreditar que sim faz parte do jogo, especialmente diante dos custos de uma guerra. Um dos cálculos mais citados é o de um ex-comandante americano na Coreia do Sul, general Gary Luck: um milhão de baixas em custo humano e um trilhão de dólares em perdas econômicas.
É poder saber que os adversários farão de tudo para não sofrer estes custos que baby Kim ri e tripudia deles. Até que passe do limite claramente especificado. Daí, só Tomahawk dá jeito.
VEJA.COM