Duas mulheres agigantaram o Brasil ao não apequenarem o Supremo Tribunal Federal na sessão que rejeitou o habeas corpus do ex-presidente Lula da Silva. Duas mulheres protagonizaram um espetáculo de conhecimento da ciência jurídica, um espetáculo de universal cultura, um espetáculo de elegância, um espetáculo de boa educação e lisura diante de provocações e ironias. Duas mulheres, com seus votos, devolveram aos brasileiros a possibilidade de crer na Justiça, na honestidade e na sabedoria do velho ditado de que o crime não compensa, mesmo praticado pela elite do estamento político.
Já é hora, sim, já é hora de apresentá-las:
Cármen Lúcia Antunes Rocha, presidente do STF desde 2016.
Rosa Maria Weber Candiota da Rosa, ministra da mesma alta Corte a contar de 2011.
Nas mãos dessas senhoras esteve lançada a sorte da República. Elas fizeram a diferença.
Era nada confortável o destino de Cármen nessa sessão do STF. Ela decidira, na competência de sua função de presidente, que não levaria a plenário, em sua forma “abstrata e genérica”, a questão da prisão no segundo grau de jurisdição – seriam julgados, isso sim, apenas casos específicos, a exemplo do habeas corpus de Lula. Assim, saíram da pauta duas ações declaratórias de constitucionalidade (ADCs), ambas relatadas pelo ministro Marco Aurélio. A presidente Cármen intuía que ele e também o ministro Ricardo Lewandowski, favoráveis ou recurso de Lula, a provocariam ao longo do julgamento. Educada ao extremo, com certeza só não esperava que tais provocações transitassem a léguas de distância do cavalheirismo.
Quando Gilmar Mendes ainda votava a favor do habeas corpus, Marco Aurélio voltou-se para Cármen: “ao liberá-las (as ações, ao plenário) eu não diminui o tribunal”. Referia-se ele ao fato de Cármen ter dito, há tempo, que votar agora as ADCs seria “apequenar” o STF. A sessão correu, ele acrescentou: “em termos de desgaste, a estratégia não poderia ser pior”. Marco Aurélio pressionava Cármen, Lewandowski pressionava Cármen, pressões que se faziam inadequadas na vã tentativa de votarem as ADCs. Essa foi a manobra de Marco Aurélio e Lewandowski. Convenhamos que, nesse epísódio, não foi Cármen quem se apequenou. Seu semblante não perdeu a serenidade, e é ele, o semblante, que reflete a alma.
Há, porém, outro ponto em que a presidente enobreceu o País: empatado em cinco a cinco o julgamento, ela desatou o nó a favor da moralidade pública, votou contra o habeas corpus. Presumia-se que assim seria o seu voto de Minerva, e por isso, talvez, colegas já chegaram pouco amistosos. Conforme se disse acima, pouco confortável era o destino de Cármen na sessão, mas, permitam-me o lugar comum, ela tirou de letra e agigantou a autoestima dos brasileiros. Diferentemente desenhava-se o destino de outra gigante, a ministra Rosa Werber.
Era confortável o destino de Rosa e, digamos, até privilegiado: ela se encontrava na condição de fiel da balança que poderia mandar Lula para a cadeia ou deixá-lo livre. O dilema de Rosa Weber não era, portanto, o de escolher essa ou aquela aternativa e ver-se, dependendo da opção, entrando ou não para a história do Brasil. A situação mostrava-se bem mais suave: era uma questão de porta! Se ela votasse a favor do habeas corpus de Lula, entraria para a história pela porta dos fundos; se votasse contra, também ingressaria na história, só que aí pela porta da frente. A certeza de ter o seu nome para sempre nos registros políticos, jurídicos e sociológicos desse nosso Brasil estava assegurada. Era mesmo uma questão de porta, e somente de porta. Rosa Weber optou pela da frente.
Decifra-me ou devoro-te
Discreta, adepta da tradição de só falar nos processos (parabéns por isso, ministra), a ninguém ela antecipara o seu voto. Manteve-se em silêncio de esfinge, a desafiar: decifra-me ou devoro-te! Rosa devorou Lula juridicamente. Marco Aurélio e Lewandowski a interromperam na leitura do voto, visivelmente contrariados, achando-o confuso. Também Rosa mostrou a paz de sua alma pela serenidade do rosto. Ela sabia que seu voto contra o habeas corpus, “em respeito à colegialidade”, fazia-se uma aula de clareza – e de republicanismo contra os eternos donos do poder.
Falando em República, até hoje vivemos o dilema da “tabuleta do Custódio”, genialmente exposto por Machado de Assis em “Esaú e Jacó”, a mostrar que o estamento burocrático que aqui mandava no Império não difere muito do estamento governamental burocrático que comanda a República. O personagem Custódio mudou a tabuleta, mas só a tabuleta, de sua confeitaria – eufemismo machadiano para dizer que do Império à República alterou-se somente a fachada. Cármen Lúcia e Rosa Weber, no histórico 4 de abril, foram bem mais adiante que Custódio: com firmeza, ciência e urbanidade no trato com seus colegas, essas duas mulheres mudaram o Brasil.
Istoé: Antonio Carlos Prado