A reviravolta ocorrida no final do julgamento do mensalão, na fase dos “embargos infringentes”, esvaziou boa parte da denúncia da Procuradoria-Geral da República (PGR) sobre o escândalo de compra de apoio político para a aprovação das reformas previdenciária e tributária em 2003.
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Especialistas em direito penal ouvidos pelo iG nessa reta final acreditam que “de mais atrevido e escandaloso caso de corrupção da República”, como descreveu o ex-procurador Roberto Gurgel, o mensalão, com as condenações definitivas, se transformou apenas em mais um esquema de corrupção ativa e passiva envolvendo parlamentares e líderes de governo.
Durante a fase inicial do julgamento do mensalão, o ex-procurador Roberto Gurgel afirmou que o caso “foi um sistema de enorme movimentação financeira com objetivo de comprar votos de parlamentares nas matérias importantes para os líderes criminosos”. E que a engenharia da trama, supostamente organizada pelo ex-ministro chefe da Casa Civil José Dirceu, era extremamente complexa.
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Entretanto, com o fim do julgamento dos embargos infringentes, o entendimento final do Supremo é de que a estrutura criada no mensalão não era tão complexa quanto a narrada na denúncia. Não houve, por exemplo, uma quadrilha organizada, “formada com o objetivo de cometer ilícitos”. Nesse aspecto, os ministros entenderam que houve apenas participação conjunta dos integrantes do núcleo político do PT: Dirceu; o ex-presidente do partido José Genoino e o ex-tesoureiro Delúbio Soares. A maioria dos ministros entendeu, após a fase final, que Dirceu não era chefe de quadrilha.
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“O que há é um grupo de pessoas praticando, segundo o Supremo, crimes. Mas não uma quadrilha voltada para uma prática indeterminada de crimes”, afirmou o professor Pierpaolo Cruz Bottini, da Universidade de São Paulo (USP).
Alguns especialistas ouvidos pelo iG afirmaram, em caráter reservado, que o entendimento do Supremo ao final do julgamento do mensalão é que Dirceu, no máximo, teria ordenado pagamentos a parlamentares para a aprovação de reformas em 2003. Não montou um sistema complexo de cooptação de parlamentares, como sugeriu a fase inicial de julgamento.
Dinheiro
Outra tese derrubada no final do julgamento está ligada à lavagem de dinheiro, que punia o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha. Antes condenado, Cunha foi absolvido desse delito nesta quinta-feira. Assim, a tese de que ele sabia que os R$ 50 mil recebidos em 2003 eram fruto de desvios na Câmara ou do Banco do Brasil foi derrubada.
O ministro Luís Roberto Barroso, ao inocentar Cunha, foi além e afirmou que “não há provas de que ele integrava o grupo político e não há nos autos informações de que ele sabia da origem ilícita dos recursos”. Apesar disso, os ministros confirmaram a tese de que Cunha foi beneficiado por um esquema de repasse de recursos a parlamentares.
Durante o julgamento, algumas teses da PGR caíram justamente pela falta de provas colhidas, segundo afirmaram os próprios ministros durante o julgamento. Na tese de quadrilha, por exemplo, a PGR não conseguiu apresentar provas de que, durante o mensalão, um grupo criminoso foi organizado com o objetivo de cometer vários crimes em sequência, aspecto principal de caracterização do crime de formação de quadrilha.
No caso da lavagem de dinheiro, também não ficou devidamente provado que os recursos do mensalão eram fruto de um “crime antecedente”, aspecto fundamental para a caracterização desse delito.
O mensalão exigiu a realização de 69 sessões do STF e cerca de 300 horas de julgamento, durante quase um ano e meio. Os advogados só possuem mais duas possibilidades de recursos: os embargos declaratórios (para discutir eventuais falhas no julgamento dos embargos infringentes) e a revisão criminal. O primeiro recurso não deve ser adotado pelas defesas, já que todos os argumentos dos réus foram acolhidos nessa fase.
A revisão criminal, por sua vez, somente será utilizada com novas provas e após a saída do presidente do STF, Joaquim Barbosa.
Confira o entendimento do STF sobre alguns crimes após os infringentes:
Formação de quadrilha: o Supremo confirmou que, para haver a configuração do crime de quadrilha, é necessária a tipificação de três situações: o ilícito precisa ser cometido por mais de três pessoas; todas devem ter a consciência de que integram um grupo que comete crimes e esse grupo precisa praticar, de forma ininterrupta, vários crimes. Se esses três elementos não estiverem juntos em um mesmo episódio criminoso, há, no máximo, coautoria. Por isso o STF entendeu que, no mensalão, não houve quadrilha. Houve pessoas envolvidas em crimes parecidos, sendo coautores destes delitos.
Ato de ofício/corrupção passiva: até o julgamento do mensalão, o entendimento era de que crimes de corrupção passiva exigiam uma comprovação documental de favorecimento ilícito, o chamado ato de ofício. Exemplo: se um secretário recebeu propina para dispensar uma licitação de uma empresa, a prova do crime seria a dispensa de licitação. Agora, isso não é mais necessário. O ato de ofício, na interpretação do Supremo, passa a ser agravante de pena e não fator de condenação. Juristas entendem que se essa interpretação fosse aplicada em 1994, provavelmente o ex-presidente Fernando Collor seria condenado pelo crime de corrupção passiva.
Domínio do fato: o Supremo endureceu o entendimento da chamada “Teoria do Domínio do Fato”. Segundo essa teoria, autor é quem tem poder de decisão sobre a prática do fato, e não apenas quem a executa. Na prática, o Supremo passará a condenar, em crimes de corrupção, tanto quem executa, quanto quem detém posicionamento hierarquicamente superior aos executores. Antes deste endurecimento, havia casos em que os “chefes” não eram punidos.
Corrupção passiva: antes do julgamento do mensalão, advogados dos réus acreditavam que o Supremo não conseguiria estabelecer um nexo entre direcionamento de mandato e recebimento de recursos, tido como fundamental para a condenação pelo crime de corrupção passiva. Mas os ministros do Supremo entenderam que, independentemente do resultado, o simples fato de um agente público ter recebido dinheiro já configura ato de corrupção passiva, seja parlamentar ou não.
Lavagem de dinheiro: a condenação pelo crime de lavagem de dinheiro ficou mais rígida na primeira fase do julgamento. Após os embargos infringentes serem analisados, no entanto, foi flexibilizada. De início, poderia ser condenada por lavagem qualquer pessoa que ocultasse ou dissimulasse o recebimento de um recurso. Agora não. A condenação exige a comprovação de que o dinheiro “lavado” é fruto de um crime anterior, como um assalto, por exemplo.
Foro privilegiado: foi a primeira grande decisão do Supremo. A partir de agora, o Supremo passa a julgar crimes de pessoas sem foro privilegiado que tenham cometido crimes em parceria com aquelas que possuem foro privilegiado. Dos 37 réus do mensalão, apenas três tinham o direito de serem julgados diretamente pelo Supremo. Os demais terminaram julgados pela Corte por causa dessa “atratividade”. De outro modo, as ações contra eles tramitariam na primeira instância.
IG-Brasília
Por – iG Brasília