Nas últimas semanas, o País acompanhou estarrecido o caso da menina de 9 anos, no Recife (PE), grávida de gêmeos do padrasto, que a estuprava há 3 anos. De família pobre, a garota se submeteu a um procedimento que interrompeu uma gestação de 4 meses, sob as duras críticas da Igreja Católica, que excomungou a mãe e os médicos responsáveis pelo aborto. Em São Paulo, a violência sexual contra menores ganha outras facetas. No centro da maior cidade do País, crianças e adolescentes passam as noites nas ruas se prostituindo. Depois das 21 horas, quase não há movimento no bairro do Glicério. Na rua Conselheiro Furtado, a iluminação escassa e amarelada das lâmpadas de mercúrio nos postes confere aos passantes ares de assombração. É neste cenário que elas, garotas franzinas, de olhar vazio, entre 12 e 14 anos, se posicionam a poucas quadras da 1ª Delegacia de Polícia da capital paulista.
A imagem choca quando, já a postos em seus lugares, elas incorporam toda a malícia que só as mais experientes profissionais do sexo possuem. Rebolam, levantam as saias, mostram as genitálias e os seios ainda não desenvolvidos para qualquer carro ou passante. Procuram restos de pedras de crack deixadas por elas mesmas e por outros usuários no meio da calçada. Tossem muito. Estão nitidamente doentes.
Os clientes começam a aparecer logo nas primeiras horas da noite. São homens de 40 a 60 anos, em grande parte taxistas, que param os carros e não demoram a abrir a porta para levar as meninas para outras ruas ainda menos movimentadas. Muitos deles nem chegam a perguntar o preço, que varia de R$ 10 a R$ 20, como relatado pelas garotas. Basta um simples movimento de mãos para que eles escolham uma das 10 adolescentes “disponíveis” que permaneceram no local durante toda a semana em que a reportagem da Folha Universal esteve lá, no começo deste mês.
Joana*, de 13 anos, está sentada na calçada. Veste shorts rosa, blusa branca, chinelos de dedo e aparenta ter alguma doença de pele. “Podemos fazer o programa aqui mesmo na rua. Custa R$ 20. E não precisa se preocupar com a polícia. Não pega nada não, tio. Eu garanto”, diz a jovem. Momentos depois de falar com a reportagem, Joana desce até a “biqueira” (ponto de venda) de drogas e volta para a rua Conselheiro Furtado fumando um cachimbo de crack.
“Por R$ 30, faço tudo”, dispara Camila*, que garante ter 14 anos, mas aparenta não ter mais do que 12. O comportamento de Joana e Camila é comum ao de outras meninas: saem com quatro ou cinco clientes por noite até às 5h da manhã e ficam cerca de meia hora com cada um deles. Quando retornam, costumam ir até um ponto de drogas, onde gastam o dinheiro com pedras de crack.
Durante a semana em que a reportagem permaneceu na rua Conselheiro Furtado, viaturas da Polícia Militar (PM) passaram mais de 20 vezes no local, inclusive, quando as meninas se drogavam. Em nenhum momento, contudo, houve abordagem. De acordo com o porta-voz da PM, capitão Marcelo Soffner, não há “o conhecimento notório da prática de exploração sexual de menores na Conselheiro Furtado”. Ele admite, porém, que a PM deveria ter abordado as menores no momento em que usavam drogas e que era dever também da polícia ter verificado o que crianças e adolescentes faziam no local durante a madrugada.
“Mas o que acontece é que nem sempre é visível que essas mulheres sejam menores”, defende o porta-voz. “Vamos intensificar o policiamento na região para apurar a denúncia”, completa.Para Regina Andrade, do Conselho Tutelar da Sé, responsável pela região central da cidade, o ponto de prostituição infantil na Conselheiro Furtado também “é uma novidade”. “Trabalhamos só a partir de denúncias. Até agora, este conselho nunca recebeu nenhuma denúncia de exploração sexual de menores nas ruas da região”, diz. Ainda segundo ela, de 2005 a 2008, foram atendidos 13 casos de garotas, de 14 a 16 anos, e outros 3 casos de adolescentes travestis, de 13 a 17 anos, que eram explorados sexualmente dentro de estabelecimentos. “Todos eles vieram da região Nordeste (do Brasil). No caso das meninas, há uma falsa promessa de trabalho como empregada doméstica.”
A versão do Conselho Tutelar é desmentida pelo porteiro E.J.S., de 35 anos, que trabalha há 10 em um dos prédios da rua do centro da cidade. Ele diz ter se cansado de ligar para
denunciar a prática de exploração, inclusive para a Polícia Militar. No final de janeiro, ele ainda fez duas denúncias para o Conselho Tutelar da Sé e guardou os números do protocolo de atendimento. “Nunca veio ninguém. Elas continuam se prostituindo e se drogando todas as noites.”
Só no estado de São Paulo, o Disk Denúncia, da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), registrou 162 casos de exploração sexual de menores em 2008, um aumento de 53% em comparação ao ano anterior. De acordo com o promotor Thales Cezar de Oliveira, do Departamento de Execução da Infância e Juventude do Ministério Público de São Paulo, a prostituição infantil na cidade é “menos organizada e mais episódica”. “Não há, necessariamente, uma rede de prostituição por trás dessas adolescentes. Elas vão para a rua principalmente porque precisam do dinheiro para comprar drogas. A desestruturação familiar é fator delimitante”, pontua.
O promotor deve comandar uma ofensiva no final do próximo mês contra os principais pontos de exploração sexual no estado de São Paulo, com base num levantamento em fase de conclusão. Mas adianta: “As rodovias Castelo Branco, Regis Bittencourt e Presidente Dutra apresentam um expressivo número de pontos de prostituição infantil.” Sobre o papel do poder público, ele comenta: “É competência do conselho tutelar ir a campo para identificar possíveis situações de negligência contra menores”. Ainda segundo Oliveira, não há um trabalho efetivo de recuperação e apoio a essas jovens em São Paulo. “O Estado acaba sendo um agente facilitador deste cenário”, avalia.
F.Uni/Por Lumi Zúnica e Fernando Gazzaneo