domingo, 22/12/2024
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A picada da mosca que deixa vítimas em sono profundo

Esque&ccedila o que voc&ecirc conhece por picada de mosquito. Enquanto o inseto &eacute capaz de inserir sua micro e fina l&iacutengua diretamente no sangue da v&iacutetima, muitas vezes sem nem ser ao menos notado, existe uma esp&eacutecie cuja boca possui min&uacutesculas serrilhas capaz de romper a pele para sugar o sangue. Trata-se da mosca ts&eacute-ts&eacute.

Para piorar, v&aacuterias esp&eacutecies dessa mosca podem transmitir doen&ccedilas. Uma das mais perigosas &eacute causada por um parasita: a doen&ccedila do sono ou tripanossom&iacutease humana africana (THA), para dar o nome oficial. Sem tratamento, ela &eacute normalmente fatal.

Como tantas doen&ccedilas tropicais, a doen&ccedila do sono tem sido muitas vezes negligenciada pelos pesquisadores farmac&ecircuticos. No entanto, investigadores t&ecircm se esfor&ccedilado h&aacute tempos para compreender como ela engana os mecanismos de defesa do nosso corpo. Algumas de suas descobertas, por&eacutem, agora podem ajudar a eliminar a enfermidade completamente.

H&aacute dois parasitas unicelulares que causam o sono mortal: Trypanosoma brucei rhodesiense e T. b. gambiense. Esse &uacuteltimo &eacute predominante e &eacute respons&aacutevel por at&eacute 95% dos casos, principalmente na &Aacutefrica Ocidental. Ele leva v&aacuterios anos para matar uma pessoa, enquanto o T. b. rhodesiense pode causar a morte em poucos meses. Existem ainda outras formas que infectam o gado.

Ap&oacutes a mordida inicial, os sintomas da doen&ccedila do sono muitas vezes come&ccedilam com febre, dores de cabe&ccedila e dores musculares. &Agrave medida que ela avan&ccedila, os infectados ficam cada vez mais cansados &ndash e &eacute da&iacute que a doen&ccedila recebe seu nome. Altera&ccedil&otildees de personalidade, confus&atildeo mental grave e m&aacute coordena&ccedil&atildeo tamb&eacutem podem acontecer.

Embora a medica&ccedil&atildeo ajude, alguns tratamentos s&atildeo t&oacutexicos e podem ser letais, especialmente se ministrados depois que o mal alcan&ccedilou o c&eacuterebro.

Controle?
&Eacute interessante notar que a doen&ccedila do sono n&atildeo &eacute t&atildeo mortal como antes. No in&iacutecio do s&eacuteculo XX, v&aacuterias centenas de milhares de pessoas eram infectadas por ano. Na d&eacutecada de 60, a doen&ccedila foi considerada sob controle e registrou n&uacutemeros muito baixos, tornando sua propaga&ccedil&atildeo mais dif&iacutecil. Mas nos anos 1970 houve outra grande epidemia, que demorou vinte anos para ser controlada.

Desde ent&atildeo, programas melhores de rastreio e interven&ccedil&otildees antecipadas t&ecircm reduzido o n&uacutemero de casos dramaticamente. Em 2009, foram contados menos de 10 000 deles pela primeira vez desde que os registros come&ccedilaram, e em 2015 esse n&uacutemero caiu para menos de 3 000, de acordo com dados da Organiza&ccedil&atildeo Mundial de Sa&uacutede. A OMS espera que a doen&ccedila seja completamente eliminada at&eacute 2020.

Mas, enquanto o decl&iacutenio parece positivo, pode haver muitos mais casos n&atildeo registrados na zona rural da &Aacutefrica. Para eliminar o problema completamente, as infec&ccedil&otildees t&ecircm de ser acompanhadas de perto. Uma s&eacuterie de novos estudos tem mostrado que o parasita &eacute mais complicado do que se imaginava.

A doen&ccedila do sono sempre foi considerada &ndash e diagnosticada &ndash como uma doen&ccedila de sangue, pois o T. brucei pode ser facilmente detectado no sangue de suas v&iacutetimas. Num estudo publicado em setembro de 2016, por&eacutem, pesquisadores revelaram ter descoberto que o parasita tamb&eacutem pode residir na pele e na gordura.

&lsquoCorrida armamentista&rsquo
Essa n&atildeo &eacute a &uacutenica raz&atildeo pela qual os parasitas podem iludir nosso sistema imunol&oacutegico. Em 2014, Etienne Pays, da Universidade de Bruxelas, na B&eacutelgica, descreveu a hist&oacuteria da doen&ccedila do sono como uma corrida armamentista entre os humanos e o parasita.

Nessa batalha, nossa principal arma &eacute uma prote&iacutena chamada apolipoprote&iacutena L1, que &eacute resistente a uma forma anterior de T. brucei. Essa prote&iacutena foi eficiente em matar o parasita no sangue, disse Pays. Pelo que sabemos, ela s&oacute estava l&aacute para mat&aacute-lo. Infelizmente, ao longo do tempo, o parasita encontrou uma maneira de burlar a prote&ccedil&atildeo da prote&iacutena.

Enquanto a apolipoprote&iacutena L1 ainda pode matar a variante que infecta o gado, n&atildeo &eacute mais eficaz contra as duas estirpes do T. brucei que infectam os seres humanos. Essas duas conseguiram escapar, disse Pays. Mas ele e sua equipe conseguiram ajustar a prote&iacutena em seu laborat&oacuterio para torn&aacute-la resistente ao T. b. rhodesiense, a forma rara, mas mais letal.

O que eles n&atildeo perceberam &eacute que h&aacute pessoas na &Aacutefrica que j&aacute t&ecircm um sistema de defesa semelhante. Gra&ccedilas a uma muta&ccedil&atildeo na mesma prote&iacutena, elas t&ecircm imunidade natural contra o T. b. rhodesiense. Pays agora suspeita que algumas pessoas sejam resistentes a todas as formas do parasita.

Essa imunidade natural infelizmente tem um custo. Ningu&eacutem ainda sabe por que, mas ela tem sido associada a doen&ccedilas renais em idade mais avan&ccedilada.

O desafio &eacute fazer uma variante sem efeitos colaterais. A equipe de Pays produziu outra prote&iacutena capaz de matar ambas as formas, mas, quando eles a testaram em camundongos, os animais morreram. O pesquisador ainda est&aacute aprimorando a prote&iacutena em seu laborat&oacuterio, na esperan&ccedila de que ela ir&aacute fornecer uma cura eficaz. N&oacutes criamos outra, que estamos testando atualmente, disse.

As fases
Se Pays atingir seu objetivo, os m&eacutedicos simplesmente precisar&atildeo injetar a prote&iacutena em uma pessoa infectada. Em seguida, ela vai matar o parasita e desaparecer. Isso &eacute promissor, mas h&aacute um desafio adicional.

A raz&atildeo pela qual a doen&ccedila do sono &eacute t&atildeo mortal &eacute que ela pode entrar no c&eacuterebro. Instalada l&aacute, causa sintomas mais graves, como confus&atildeo, alucina&ccedil&otildees e m&aacute coordena&ccedil&atildeo. Uma vez no c&eacuterebro, ela se torna mais dif&iacutecil de tratar e, portanto, mais fatal. M&eacutedicos pensam nisso como um segundo est&aacutegio da doen&ccedila, sendo a primeira quando o parasita infecta o sangue.

Para atingir o c&eacuterebro, o parasita deve atravessar a barreira sangue-c&eacuterebro, que bloqueia a maior parte das doen&ccedilas e toxinas. A quest&atildeo-chave &eacute como ele atravessa &ndash ao que parece, estamos olhando para o lado errado do problema.

Um estudo publicado em outubro de 2016 prop&otildee que a doen&ccedila do sono tem tr&ecircs fases, e n&atildeo duas, como se pensava anteriormente. A primeira &eacute a picada da mosca ts&eacute-ts&eacute, ap&oacutes a qual o parasita infecta o sangue da pessoa. Na segunda etapa, que n&atildeo foi identificada anteriormente, o parasita aparece no l&iacutequido cefalorraquidiano e em tr&ecircs membranas que envolvem o c&eacuterebro, conhecidas como meninges.

Na terceira fase, as fronteiras de prote&ccedil&atildeo do c&eacuterebro quebram e uma invas&atildeo em massa de tripanossomas atravessa a barreira sangue-c&eacuterebro, atacando-o.

Michael Duszenko, da Universidade de Tubingen, na Alemanha, e seus colegas descobriram o segundo est&aacutegio em camundongos. Eles tamb&eacutem encontraram uma raz&atildeo para que a terceira fase leve meses e &agraves vezes anos para ocorrer: acontece que o parasita se mant&eacutem no segundo est&aacutegio, ativamente atrasando o progresso da doen&ccedila.

Para conseguir isso, ele libera um composto chamado prostaglandina D2, que faz duas coisas. Em primeiro lugar, induz o sono no paciente, tornando-o mais vulner&aacutevel &agrave picada de uma mosca ts&eacute-ts&eacute. Em segundo lugar, faz com que algumas das c&eacutelulas de parasitas iniciem um processo chamado apoptose, ou morte celular. Em outras palavras, o tripanossoma propositadamente destr&oacutei algumas das suas pr&oacuteprias c&eacutelulas.

Matar suas pr&oacuteprias c&eacutelulas pode soar como uma m&aacute ideia, mas faz&ecirc-lo reduz a carga do anfitri&atildeo e aumenta a probabilidade de parasitas serem transmitidos para a mosca ts&eacute-ts&eacute, diz Duszenko.

O conceito &eacute manter o hospedeiro vivo, de modo que o parasita tenha mais tempo para infectar outras pessoas. Se a concentra&ccedil&atildeo de parasitas subir muito rapidamente, o anfitri&atildeo morreria antes de o parasita se espalhar. Essa descoberta pode ajudar a explicar por que algumas pessoas vivem com n&iacuteveis cr&ocircnicos da doen&ccedila por anos. Livros did&aacuteticos devem agora ser reescritos em conformidade com essas pesquisas, diz Duszenko.

Advers&aacuterio dif&iacutecil
Apesar desses avan&ccedilos, ainda h&aacute o problema de que o T. brucei &eacute muito bom em se manter um passo &agrave frente da defesa dos seus anfitri&otildees. O parasita &eacute particularmente h&aacutebil em varia&ccedil&atildeo antig&ecircnica: tem mais de 1 000 vers&otildees de uma prote&iacutena em sua superf&iacutecie exterior, mas exibe apenas uma vers&atildeo de cada vez, de modo que o sistema imunol&oacutegico do hospedeiro s&oacute produz anticorpos contra a prote&iacutena que est&aacute &agrave mostra.

Nesse meio-tempo, alguns dos parasitas mudam para outra vers&atildeo, que n&atildeo podem ser atacadas por esses anticorpos. Toda vez que o anfitri&atildeo produz anticorpos contra uma nova onda de parasitas, alguns tripanossomas mudam para uma nova camada. A resposta imune est&aacute sempre tentando recuperar o atraso com os parasitas, diz Martin Taylor, da Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres.

Em parte por isso, n&atildeo houve novas drogas durante d&eacutecadas. Um dos medicamentos recomendados &eacute a pentamidina, que trata a primeira fase do T. b. gambiense &ndash ela foi desenvolvida em 1940. O melarsoprol, que trata a fase final, foi desenvolvido em 1949 &ndash &eacute t&oacutexico e causa a morte em cerca de 5% dos casos.

Outra quest&atildeo &eacute que as empresas farmac&ecircuticas n&atildeo t&ecircm investido muito dinheiro em pesquisas sobre a doen&ccedila do sono: ela &eacute uma das chamadas doen&ccedilas negligenciadas. A raz&atildeo pela qual elas s&atildeo chamadas de doen&ccedilas negligenciadas &eacute porque elas foram negligenciadas, diz Taylor. Porque s&atildeo doen&ccedilas das pessoas mais pobres dos pa&iacuteses em desenvolvimento, e, uma vez que leva milh&otildees de d&oacutelares para desenvolver uma droga para o mercado, n&atildeo h&aacute o incentivo econ&ocircmico para criar novos medicamentos.

Isso parece ter mudado um pouco nos &uacuteltimos anos. Algumas empresas farmac&ecircuticas at&eacute fizeram parcerias com organiza&ccedil&otildees sem fins lucrativos que pressionam por novos rem&eacutedios. MacLeod diz que h&aacute duas novas drogas em vias de desenvolvimento, que est&atildeo passando por testes. Recentemente, tem havido um esfor&ccedilo para encontrar drogas para essas doen&ccedilas negligenciadas, afirma.

A doen&ccedila do sono certamente continuar&aacute presente nos pr&oacuteximos anos. Mas, ao revelar mais segredos do parasita, um dia poderemos ser capazes de coloc&aacute-la para dormir de vez.

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Parmenas Alt
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