Eu estava tomando chá no hotel Safi Landmark com um antigo piloto mujahidin de caças-bombardeiros quando um homem-bomba se explodiu no saguão. Enquanto hóspedes corriam para se proteger, o piloto conservou a calma. Quando um guarda disse que havia três outros homens-bomba soltos no prédio, ele mal piscou.
Esse tipo de sangue-frio é uma característica de uma cidade que vem suportando anos de violência. Mas por trás do ar corajoso ostentado pelos moradores de Cabul esconde-se o medo.
Medo do que pode significar a retirada das tropas estrangeiras, medo do que o Taleban vai fazer a seguir e medo de que o país esteja se encaminhando inexoravelmente para uma nova rodada de guerra civil.
O assassinato do ex-presidente Burhanuddin Rabbani na semana passada trouxe essa perspectiva um pouco mais perto. Na melhor tradição dos hierarcas afegãos, ele era tanto um respeitado estadista aposentado quanto um senhor de guerra, político arrogante e estudioso islâmico. Agora seu túmulo no alto de uma colina será um marco na marcha do Afeganistão em direção ao capítulo seguinte em 30 anos de violência fratricida.
Para compreender o que está acontecendo, é importante deixar de lado o que estão dizendo generais e políticos da Otan. Sim, é verdade que as forças especiais americanas vêm prendendo comandantes do Taleban, invadindo lares afegãos. Também é verdade que o contingente e o âmbito de ação do exército e da polícia vêm aumentando, rapidamente, embora de modo desigual. E, também, os EUA não vão abandonar o Afeganistão novamente, pelo menos não da maneira como fizeram após a saída do Exército Vermelho –o Pentágono vai manter bases muito depois da data de retirada, marcada para 2014.
Nada disso vai impedir o enfrentamento que se aproxima. Com os aumentos sucessivos de tropas feitos pela administração Obama já começando a diminuir, cada vez mais são atores afegãos e paquistaneses que estão tomando as decisões chaves. E, para que fique claro, não existe chance alguma de um acordo de paz entre o governo do presidente Hamid Karzai e o Taleban no futuro próximo. A morte de Rabbani, que tinha sido encarregado de tentar uma aproximação com os insurgentes, destruiu de uma vez por todas a ideia de que uma reconciliação seria viável nos próximos meses.
A facilidade com que homens-bomba podem infiltrar o chamado anel de aço montado pela polícia de Cabul para atacar hotéis, disparar granadas impelidas por foguetes contra a embaixada americana ou matar afegãos destacados, intensifica a impressão crescente de que esta é uma cidade disputada com ferocidade. A situação é muito pior em cidades de província, onde altos funcionários governamentais não param de ser assassinados.
Ahmed Wali Karzai, o irmão do presidente, que uma vez se descreveu para mim de modo improvável como sendo “a Nancy Pelosi” de Candahar, foi morto a tiros em julho. Daoud Daoud, um astuto general da polícia que costumava transmitir com sorriso matreiro sua desconfiança de que Ahmed Wali estaria envolvido em tráfico de drogas, foi explodido em maio. O ex-prefeito de Kandahar Ghulam Haider Hamidi, que sempre me dizia alegremente que a segurança estava melhorando, também foi assassinado em julho.
Esta implosão em câmera lenta da administração vem tornando a situação ainda mais febril. Muitos em Cabul dirão que o Taleban pode ser contido e que é seu próprio governo que está fora de controle. Karzai vem presidindo sobre um sistema de capitalismo clientelista simbolizado pelo escândalo no Banco de Cabul: um esquema de pirâmide de US$1 bilhão no qual estão envolvidos vários nomes da elite da cidade.
Oligarcas que enriqueceram com contratos da Otan percorrem a cidade em comboios de picapes com homens armados e mascarados agarrados atrás. Mesmo esses empreendedores da economia de guerra estão com medo: um deles me disse que seu filho de 5 anos o aconselhou a parar de trabalhar com os americanos e entrar para o Taleban.
No vazio de poder, as velhas lealdades ganham mais e mais importância. Rabbani era um titã da Aliança do Norte, feita de senhores de guerra da comunidade étnica tadjique. Seus líderes vêm prosperando desde a queda do Taleban, que vem do sul do país, dominado pelos pashtuns. A morte dele aprofundou as divisões na guerra civil, acelerando a polarização crescente entre afegãos do norte e pashtuns.
A tendência agrada aos generais do Paquistão, que vêm alimentando a discórdia, dando apoio ao Taleban. Um Afeganistão fraco lhes convém mais que um Afeganistão pró-Índia. Sem dobrar-se à pressão dos EUA, os espiões do Paquistão vão continuar a dar apoio a organismos que atuam em seu nome no Afeganistão, como a rede Haqqani, para que estes protejam seus interesses.
É possível interromper o movimento em direção à guerra civil? A Otan não conseguiu. Durante três semanas que passei acompanhando forças dos EUA no verão passado, nada chamou minha atenção mais que ficar assistindo a três homens armados com pás, AK-47s e fertilizante calmamente plantando uma bomba em uma estrada, enquanto um avião Hornet F-18 sobrevoava ao alto. Veículos armados foram enviados às pressas ao local, mas de nada adiantou –os homens tinham desaparecido.
A insurgência não pode ser derrotada no campo de batalha. E o Taleban não pode ser coagido a fechar um acordo. A única esperança é que as transformações ocorridas na sociedade afegã nos últimos dez anos possam servir de incentivo para que a moderação acabe por prevalecer. Em Cabul, pelo menos, uma geração mais jovem está há muito tempo desiludida com a política das armas. Mas, como mostram os chamados por vingança ouvidos no funeral de Rabbani, hoje a política no Afeganistão é regida pelo medo.
Matthew Green é correspondente do “Financial Times” no Afeganistão e Paquistão
Tradução de Clara Allain
F.COM