No Brasil, cerca de 50 milhões de pessoas estão em situação de insegurança alimentar; falta de políticas públicas faz com que o país, um dos maiores produtores agrícolas do mundo, não consiga fornecer alimentos para toda a população
O conflito entre Rússia e Ucrânia se encaminha para além do território do Leste Europeu, mas não se trata inicialmente de uma Terceira Guerra Mundial, e sim do agravamento de um problema que já estava presente no mundo: a insegurança alimentar. Segundo o último relatório da Rede Mundial contra as Crises Alimentares, houve, de 2020 para 2021, um aumento de 40% na quantidade de pessoas com fome aguda, contabilizando cerca de 200 milhões que não têm acesso físico, social e econômico a recursos e alimentos nutritivos que atendam as necessidades dietéticas. Rússia e a Ucrânia são dois países com forte atuação no setor agrícola – só de trigo respondem por 30% da exportação de todo o mundo, o que corresponde a 210 milhões de toneladas. Uma escalada maior do conflito e a não previsão de término já tem surtido efeitos mundiais que fazem com que o preço dos alimentos se elevem e a porcentagem de pessoas que tenham acesso a eles diminua. No fim de março, o diretor-executivo do Programa Mundial de Alimentos (PAM), David Beasley, advertiu que “a guerra na Ucrânia terá um impacto terrível nas milhões de pessoas que passam fome em todo mundo. Isso significará uma explosão nos preços dos alimentos, combustível, transporte, mas também menos comida para aqueles que estão famintos, e haverá ainda mais pessoas passando fome”.
No Sudão, segundo o diretor de operações da “Save the Children”, David Wright, até o final do ano, 20 milhões de pessoas sofrerão de insegurança alimentar, o que significa quase metade da população do país de 45 milhões de habitantes. A Organização das Nações Unidas (ONU) já alertou que um em cada três sudaneses precisam de ajuda alimentar. No Peru, os refeitórios lutam para alimentar alguns dos moradores mais pobres e vulneráveis do país andino, cortando proteínas à medida que os preços dos alimentos disparam. No Brasil, segundo a ONU, 49,6 milhões de pessoas estão em insegurança alimentar moderada e 7,5 milhões estão em situação severa. O oficial de políticas de sistemas alimentares do escritório da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) para América Latina e o Caribe, Joao Intini, afirma que ainda não se sabe com clareza a extensão do conflito entre Rússia e Ucrânia nas cadeiras alimentares globais, mas ele chama atenção para uma preocupação que precisa ser considerada: o comércio internacional e a capacidade de fluir as transações comerciais que precisam continuar funcionando.
“Existem vários estoques de alimentos básicos como arroz, trigo e milho que estão distribuídos em vários países e são o suporte necessário para a manutenção do comércio internacional e o abastecimento desses países, e isso tem uma duração, mas ela é incerta porque está conectada as demandas”, explica Intini. “Esses países que são improntantes no comércio internacional, principalmente no mercado de trigo, milho e vários azeites e óleos, poderão realmente trazer impactos a segurança alimentar no mundo se o conflito pendurar”, acrescenta. Segundo um vice-diretor da FAO, quase 25 milhões de toneladas de grãos estão presos na Ucrânia e não conseguem deixar o país devido a problemas de infraestrutura e portos bloqueados no Mar Negro, incluindo Mariupol. Imagens de satélites analisadas pela empresa de geolocalização Kayrros mostram que o rendimento da próxima colheita de trigo na Ucrânia poderá ser 35% menor em relação a 2021 devido à invasão russa que afetou gravemente a temporada de plantio, que está em curso, e obrigou os agricultores a trabalharem debaixo de bombas, com dificuldades para encontrar combustível. Segundo a Kayrros, neste momento, a Ucrânia teria capacidade para produzir 21 milhões de toneladas de trigo em 2022, 12 milhões a menos que em 2021. Em relação à média dos últimos cinco anos, o rendimento das colheitas seria 23% menor. O professor de Relações Internacionais da ESPM, Demetrius Cesário Pereira, complementa a fala do representante da FAO ao informar que como Rússia e Ucrânia são grandes produtores agrícolas, os efeitos da guerra devem ter um impacto global. “Isso pode levar a uma escassez de alimento no mundo que pode afetar não só os importadores de alimentos e fertilizantes, mas também outros países, porque essa exportação pode ser redirecionada e pode afetar o mundo inteiro”, resume.
A escalada nos preços afeta diretamente a realidade dos países mais pobres. O bloqueio dos grãos na Ucrânia é um dos fatores responsáveis pela alta, que atingiu nível recorde em março devido à incerteza sobre os fornecimentos. Em abril, houve uma queda, porém os preços se mantêm em um nível historicamente alto. Demetrius explica que os primeiros efeitos serão sentidos nos países que fazem as importações diretas tanto da Rússia como da Ucrânia, mas “que em médio e longo prazo pode afetar outros países, porque a guerra afeta as exportações, já que os produtos não vão sair das plantações e os portos não vão funcionar, fazendo com que toda a cadeia seja afetada”, explica. “Isso pode fazer efeito não só nos países mais próximos mas também no mundo inteiro”, acrescenta. Esse cenário deve afetar principalmente os países mais pobres, como Afeganistão, Etiópia, Haiti, Somália, Sudão do Sul, Síria e Iêmen, que dependem de cereais ou fertilizantes russos e ucranianos. Só em 2021, a Somália obteve mais de 90% do seu trigo de Rússia e Ucrânia. A República Democrática do Congo recebeu 80% e Madagascar importou 70% dos alimentos.
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