Por Gustavo Canale*
Se você acha que o problema está nos morcegos, ainda não entendeu o que está acontecendo. Se acha que está nas florestas, entendeu menos ainda. O problema mais grave não está na pandemia causada por um dos vários coronavírus existentes, mas na falta de perspectiva histórica e no imediatismo míope, os quais impedem as autoridades de entenderem que esta é apenas uma de uma série de epidemias e pandemias a serem enfrentadas. Não sabemos quando, mas sabemos que outras virão. O novo coronavírus (SARS-COV2) está nos dando a chance de preparar estratégias para o enfrentamento de outras várias epidemias com potencial pandêmico, que estão latentes em nosso ambiente.
O próximo vírus a afetar o Brasil não virá do Kansas (como o vírus da gripe “espanhola”) ou de Wuhan, ele poderá ser brasileiro. Os vírus já estão por aqui muito antes de seres humanos ocuparem o continente americano. Para citar apenas um exemplo temos o hantavírus, muitas vezes mais letal do que o novo coronavírus seu principal foco de surtos esporádicos está nas regiões de avanço das monoculturas de grãos e pastagens sobre a vegetação nativa de Cerrado e Amazônia de Mato Grosso. As hantaviroses levam anualmente dezenas de trabalhadores à morte na zona rural do Estado.
E por que temos tantos vírus no Brasil? Isto ocorre por vivemos em um país tropical, abençoado por (escolha o/a(s) de sua preferência), bonito por natureza, e repleto de uma biodiversidade esplendida, rica e pouco conhecida. Este cenário fascinante abriga a maior diversidade de primatas do planeta, a segunda maior diversidade de morcegos e a maior diversidade de roedores silvestres do mundo, mais de 200 milhões de habitantes, cerca de 180 línguas faladas, mais de 200 povos originários com culturas distintas, e muitos vírus.
Entretanto, a miopia está evidente nas projeções de reabertura do comércio, no afrouxamento do isolamento social, mas, principalmente, no erro de não perceber que estamos tendo a chance de estruturar medidas socioeconômicas e sanitárias para uma próxima pandemia. Pensando de forma simplista e dicotômica, como tem sido o costume nos grupos de aplicativos e nos churrascos de domingo, qualquer cidadão, de bem, poderia pensar que: “se o coronavírus vem do morcego (sic) basta exterminar todas as populações de morcego e resolveremos nosso problema”. Aqui percebemos que nosso inimigo não é o morcego. Explico. Imaginemos que o cidadão, sempre bem-intencionado, consiga recursos suficientes para começar um processo de “desmorcegação”. Permito-me o neologismo seguindo o precedente aberto pelos ratos. Neste processo, muitos morcegos morreriam, mas alguns ficariam apenas debilitados. É um fato científico que animais debilitados aumentam sua capacidade de replicação e disseminação de vírus no ambiente. Mesmo que o cidadão, aquele do “zap”, consiga a façanha de matar todos os milhões de morcegos que sobrevoam florestas, plantações e cidades do Brasil, de um único golpe e sem deixar testemunhas, a chance de um vírus encontrar outro hospedeiro, tais como animais domésticos, de criação, ou seres humanos, é gigantesca. Tão possível quanto a chance de uma pandemia parar o planeta de mais de 7 bilhões de humanos no século XXI. Vale ressaltar que este cenário, ou epidemias em escalas regionais, deverá voltar a ocorrer com outros vírus já presentes em ambientes urbanos e silvestres. Tenha em mente o hantavírus.
Chegamos então à segunda agonia que assola o cidadão, sempre aflito em acertar: se vivemos em um planeta repleto de florestas, animais e vírus, como evitar ou amenizar as epidemias? Atualmente os pesquisadores têm algumas sugestões a partir de estudos realizados em ambientes naturais. A conversão de ambientes naturais em ambientes urbanos, ou em áreas de pasto e agricultura, diminuem os recursos alimentares para os animais silvestres e interrompem suas rotas de movimentação e migração. Isto gera fome nas populações destes animais, diminui a eficiência de seu sistema imune, potencializa a replicação do vírus nos organismos debilitados, e aumenta a chance de animais silvestres disseminarem vírus para as populações de humanos. Torna-se óbvio que a manutenção de florestas com alta qualidade ambiental e disponibilidade de alimento para a fauna é uma das melhores soluções para diminuirmos os riscos de disseminação de viroses.
Hoje, Mato Grosso é proporcionalmente um dos estados da Amazônia Legal com a menor extensão de áreas de proteção integral para a biodiversidade (sensuSistema Nacional de Unidades de Conservação). Por consequência, as terras indígenas complementam vigorosamente a proteção da vegetação nativa mato-grossense. E são justamente os povos indígenas que estão sendo colocados em situação de maior vulnerabilidade pelo afrouxamento do isolamento social proposto pelas autoridades. Isto se deve ao fato de muitos povos terem sido deslocados de seus territórios originários, forçados a adotar novas práticas de produção de alimento e, por consequência, necessitarem de remédios e alimentos vindos de fora das terras indígenas. Este trânsito de pessoas e produtos pode levar agentes contagiosos para dentro das aldeias, como o coronavírus que já está presente em municípios de referência para as populações indígenas, como Sinop, Querência, e Canarana em Mato Grosso. Urge a necessidade de protegermos as florestas para a nossa própria sobrevivência, e o conhecimento dos povos originários, os grandes engenheiros de ecossistemas, é fundamental.
Neste momento, boa parte da população ainda não entendeu a importância de ficar em casa, outra enorme porção da sociedade brasileira não tem condições de ficar em casa sem trabalho. Os auxílios do governo federal não chegam ao bolso do trabalhador com a mesma rapidez da fome e das dívidas a pagar. Por sua vez, muitos prefeitos e alguns governadores recomendam que a população siga sua rotina normal, compre sua máscara ou será multado, use álcool em gel, se achar e tiver condições de comprar, e siga trabalhando por um salário de fome. Para o bom funcionamento de uma estratégia planejada de isolamento social, é necessário um conjunto enorme de ações de solidariedade coletiva e de autoridades com verdadeiro espírito público. As autoridades eleitas pelo povo seguem flexibilizando o isolamento social, e lavando as mãos.
O isolamento social é a forma mais eficaz para conter esta pandemia em curto prazo, em função da alta capacidade de transmissão do novo coronavírus entre as pessoas. Máscaras, álcool em gel e outros equipamentos de segurança são importantes, mas nada substitui o isolamento social neste momento de pico de disseminação da doença. Porém, devemos pensar em medidas que evitem ou diminuam os efeitos de epidemias tropicais em cenários que evolvam estratégias de longo prazo. Dentre as estratégias, certamente está a proteção da biodiversidade, com a criação e implementação de novas áreas legalmente protegidas, tais como os Parques Nacionais e Estaduais e as Reservas Biológicas. Como também, será fundamental a proteção de habitats e corredores ecológicos para a fauna em Áreas de Preservação Permanente (APP), Reservas Legais e Terras Indígenas. Em um futuro pós-pandêmico, toda gestão territorial deverá ser planejada considerando que qualquer área de desmatamento é potencialmente um local de surgimento de novas epidemias.
*Gustavo R. Canale é biólogo, PhD em Ecologia e Conservação pela Universidade de Cambridge (Inglaterra), tem experiência nas áreas de Zoologia de Vertebrados e Ecologia com ênfase em Biologia da Conservação. Atualmente é professor da Universidade Federal de Mato Grosso, representante da subseção da Adufmat-Ssind – campus Sinop, e presidente da Sociedade Brasileira de Primatologia.