Passada a decolagem, acima das nuvens, quando a aeronave chega a cerca de 11 quilômetros em relação ao chão, o comandante avisa que o voo entrou em nível de cruzeiro. A altitude torna o ar fique rarefeito, então o avião encontra menos resistência e poupa combustível enquanto mantém a velocidade. Menos turbulências, mais conforto para os passageiros. A aviação nos serve de metáfora para entender o estado financeiro do Flamengo. Pois é nesta fase do clube que deixou o ex-presidente Eduardo Bandeira de Mello em 2018.
A publicação das contas auditadas do último ano de Bandeira na direção, no fim da semana passada, deu números finais para os seis anos de administração. Não precisamos reescrever toda a história, mas, fazendo uso da aviação, pode-se dizer que o grupo de empresários e executivos que chegou ao poder em 2013 pegou a aeronave rubro-negra ainda na pista, danificada e sem combustível para ligar os motores. Havia quase R$ 800 milhões em dívidas, quatro vezes mais do que receitas, e nenhuma perspectiva de fazer investimentos em futebol.
A recuperação administrativa e financeira teve dois momentos distintos. No primeiro, entre 2013 e 2015, o faturamento aumentou e foi usado para pagar dívidas. Não deu para mais do que pagar as contas do passado. O Flamengo entrou no Profut e equacionou pendências fiscais, fez seu Ato Trabalhista para lidar com salários atrasados de ex-funcionários, negociou dívida por dívida por meio do departamento jurídico. Entre 2016 e 2018, pôde subir gradualmente investimentos no futebol profissional. Ainda com turbulências, mas ganhando altitude.
● Receitas: 347
Foi na segunda etapa que o Flamengo fez os primeiros investimentos mais ousados no futebol, a começar pela repatriação do meia Diego. À medida que a torcida aumentava a exigência por títulos, até hoje não atendida, a diretoria comprometia mais dinheiro com contratações, até chegar à compra recorde dos direitos do atacante Vitinho no ano passado. Isso enquanto dívidas ainda consumiam parcela do orçamento, enquanto ainda obrigavam a diretoria a ter comedimento na hora de aplicar o dinheiro. A segunda fase da recuperação rubro-negra, como gostam de dizer ex-integrantes da diretoria, foi a da consolidação.
Os números requerem cuidados. A receita caiu de R$ 655 milhões em 2017 para R$ 543 milhões em 2018, por exemplo. Há um asterisco aí. Enquanto a extraordinária venda de Vinicius Júnior foi toda contabilizada na temporada retrasada, ainda que parte da verba a receber tenha sido parcelada nos anos seguintes, a também caríssima transferência de Lucas Paquetá foi concretizada no segundo semestre do ano passado, mas só será contabilizada em 2019. Por motivo contábil, a grana só entrará no próximo balanço. Na prática, a transação fez com que o faturamento fosse mantido em alta.
Também se pode dizer que o superávit foi de “apenas” R$ 46 milhões, inferior aos R$ 165 milhões registrados no ano anterior. Sobrou menos dinheiro na diferença entre receitas e despesas porque, conforme a decolagem chegava ao fim e deixava a aeronave rubro-negra em cruzeiro, a diretoria passou a gastar mais com investimentos. Para que se tenha ideia, a linha “amortizações de direitos econômicos”, referente a atletas contratados, passou de quase nada para R$ 74 milhões em 2018. Óbvio que o superávit seria menor, e não há nada errado nisso.
Em R$ milhões 15,89 %
Mais importante até do que receitas e superávits, a explicação para o início da terceira fase na história recente do Flamengo está na mudança de perfil de seu endividamento. A redução do valor bruto chama atenção, mas o torcedor pode olhar para o balanço e ficar com a impressão de que R$ 455 milhões são dívidas demais. Que a antiga diretoria deveria ter sacrificado um pouco mais o futebol para baixar esse número ao mais próximo de zero possível. Na verdade, não. E o melhor jeito de entender a gravidade desse numerão é quebrando-o.
Grande parte da dívida flamenguista está equacionada pelo Profut, programa do governo que permitiu a clubes de futebol renegociar impostos atrasados em até 20 anos. Basta manter seus pagamentos em dia. Empréstimos bancários foram reduzidos, dívidas trabalhistas também. Por fim, houve aumento dívidas com agentes e outros clubes. Mais um asterisco neste número, por favor. Nada mais natural para um clube que, enfim, foi ao mercado comprar jogadores. Este tipo de dívida, neste caso específico, não aumentou porque a diretoria deu calote em alguém, e sim porque comprou reforços para o futebol em parcelas.
A estabilização permitiu que o Flamengo começasse 2019 com R$ 100 milhões para investir em jogadores. Situação de fazer inveja para adversários que, endividados, dependem unicamente de empréstimos e atletas sem contrato para reforçar seus times. Rodolfo Landim, novo presidente, comprometeu até mais do que essa quantia com as transferências de Rodrigo Caio, Arrascaeta e Bruno Henrique. Ainda fechou a chegada por empréstimo de Gabigol, de quem paga “somente” o alto salário que o atleta tinha na Inter de Milão. O dinheiro não caiu do céu. Todos os investimentos são resultado da jornada de seis anos.
O Flamengo finalmente chegou à altitude ideal para que chegue mais rápido e mais longe do que em qualquer outro momento de sua história.
Em R$ milhões 65,95 %
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