Até os 27 anos, Paula Sabattini era Paulo Sérgio. Formada em Artes Plásticas na USP e Artes Cênicas na Unesp, ela é uma travesti ativista, inteligente e bem humorada. Seus amigos a chamam de Paulette Pink. Conheça o mundo dela
Ela bem que poderia figurar entre as musas de Chico Buarque ou tomar para si o papel de diva que Roberta Close teve nos anos 1980. A primeira vista, Paula Sabbatini é uma mulher comum na faixa dos quarenta e poucos anos – que ainda fantasia o dia em que vai à padaria da esquina tomar um cafezinho com o príncipe encantado (que quase todas nós sabemos que não existe). Vaidosa a ponto de não sair de casa sem rosar as bochechas e salpicar um gloss nos lábios, ela gosta de arte, moda, gastronomia e música, e vive às turras com as próprias curvas (quem não?)
Em sua rotina, Paula acorda lá pelas sete da manhã, prende os cabelos enormes em um coque desalinhado e puxa o colchonete de ginástica guardado atrás da máquina de costura. Vai para o chão e contabiliza 150 abdominais. Depois come feito um passarinho: meia fruta, uma xícara de chá puro, um teco de bolacha sem glúten e uma lasca de queijo branco. Volta para o centro da sala e conclui a série de exercícios, agora com 150 agachamentos. “É para manter a bunda durinha”, diz em meio às gargalhadas. Só então ela pega o celular e checa as dezenas de mensagens – muitas enviadas por admiradores. “São fãs da Paulette ou da Cher”, minimiza
A moça que passou a infância trancada no corpo de Paulo Sérgio, numa cidadela do interior paulista, aprendeu a duras penas a conviver com a censura da sociedade antes de colocar para fora a sua verdadeira identidade. “Costumo dizer que já nasci ativista! Ninguém gosta de travesti, e se fazer aceitar é um trabalho hercúleo (todo mundo tem pencas de amigos gays e lésbicas, mas quantos você conhece que convidam a amiga ‘boneca’ para a ceia de Natal?)! É um fardo enorme se assumir diante de pessoas que não te querem por perto. Nunca foi fácil, e mesmo no século 21 ainda sofremos retaliações – é só conferir as estatísticas para compreender o que falo. O Brasil ainda mata quem se atreve a ser diferente. Então, a luta de uma travesti não tem trégua!”, pontua com ar sério
Dois minutos depois, ela sorri e diz com uma voz gentil que precisa correr para não atrasar os seus compromissos. Aguardo sentada no sofá e passo o tempo observando a pintura de estilo renascentista que preenche a parede do corredor. Tem um jeito emprestado da capela Cistina, e logo revela que Paula tem formação que vai muito além do showbiz. Ela fez artes plásticas na USP e artes cênicas na Unesp. Uauuuu! É um currículo invejável
Quando finalmente abre a porta do banheiro cantarolando a sua nova música – “Para Tudo”, escrita por Felipe Cataia – já está com pose fatale. Imagino que o visual faça parte do seu sex appeal, pois não há vulgaridade em uma mulher de jeans, bata e sapatilhas nos pés. Mas com 1,80 metro, madeixas longas e seios fartos, é impossível não parar a construção
Paula Sabbatini se divide entre a vida de empresária – ela comanda um negócio de maquiagem e de figurinos para corporações, publicidade e teatro (recentemente, ganhou o prêmio Bibi Ferreira pelo visagismo do musical Forever Young) –, e o palco. E é quando as cortinas sobem e os holofotes acendem que ela se sente mais realizada, seja na pele cor-de-rosa de Paulette Pink, sua cria há mais de duas décadas, ou na exuberância pop de Cher
A montagem dá trabalho e leva um punhado de horas: tem três calcinhas, meia-calça sobre meia-calça, cinta, espartilho, perucas imensas, saltos altíssimos e muita maquiagem! “Tem que ser mulher demais para encarar esse abismo feminista” – pondero. Como se ela pudesse ler o meu pensamento, logo emenda em tom de graça: “A minha felicidade é animar as pessoas e causar essa sensação de catarse quando me enxergam como uma divindade”
Longe das camadas de base e do brilho do glitter, Paulette, como ela é chamada carinhosamente pelos amigos, mostra a pele que verdadeiramente habita. Neste ensaio exclusivo para o Portal IG, mostramos mais sobre essa geminiana de traços delicados, contornos voluptuosos e personalidade forte
Passei 9.855 dias escondida em um corpo que não era meu
Como é um dia comum na vida da Paula Sabbatini?
Acordo sempre no mesmo horário, mesmo que tenha tido show na noite anterior, malho e tomo café da manhã. Depois cuido da minha agenda e cumpro todos os compromissos com o máximo de pontualidade (aiii, detesto atraso!!!!). Em noite de show, me transformo em drag queen e faço a melhor apresentação da minha carreira
E como você descreveria o seu dia perfeito?
Trabalhar intensamente e deixar todos ao redor satisfeitos, sair para jantar com um bofe bafônico e fechar com uma noite quente de sexo! Ui!
Como seria o relacionamento dos seus sonhos? O que um homem precisa fazer para te conquistar?
É claro que esse “príncipe” não pode ter vergonha de me apresentar aos amigos e à família, né? Gosto de sair para jantar ou tomar um drinque, então para mim é fundamental ter vida social. Além disso, sou muito carinhosa e faço questão da reciprocidade. A conquista vem com a convivência
Você é do signo de gêmeos – acredita que isso influencia quem você é?
Tenho mil ideias ao mesmo tempo e mil caminhos a seguir. Sempre me sinto confusa com as escolhas… Então, como não está em mim fazer muitas coisas ao mesmo tempo, decido por aquilo que é mais urgente. Também sou ansiosa ao extremo e confesso que sou dona de um humor flutuante! Será que a culpa é do meu astro-regente? (Risos)
Quando você se descobriu artista?
Ninguém se descobre artista, é a arte que toma conta da gente. Mas desde criança, o que mais me fazia feliz era desenhar no saco de pão. Vendia alface e juntava dinheiro para comprar giz de cera, também vasculhava a sala de aula atrás de tocos de lápis de cor descartados. E cada vez que me sentava para desenhar, era tomada por uma alegria contagiante. Foi por conta disso que segui a direção da arte
Não acredito que só se é mulher ou se é homem
O que você não vive sem?
Criatividade. Acho que é fundamental a gente estar um passo à frente, especialmente quando as suas melhores ideias são “roubadas”!!! (Pausa dramática: Paulette confessa que acaba de sair de um pseudo-relacionamento com um publicitário famoso, que “surrupiou” alguns de seus projetos)
Você disse que gosta muito de cozinhar. Fale sobre os seus gostos culinários
Tenho prazer em cozinhar para os amigos. É como se fosse uma terapia. Fico ali misturando os ingredientes e aproveito para colocar os pensamentos em ordem. Quando estou sozinha não saio do trivial
Você pode nos dizer como é a Paula quando ela tem que encarnar a Cher?
Definitivamente, eu “divo”! A Cher foi crucial para enriquecer as minhas performances e me abriu muitas portas. Até conheci a própria Cher! E sem nenhuma modéstia, ela ficou de queixo caído!
Hoje sou ainda mais mulher, me sinto confortável comigo
E a Paulette, você se sente um pouco refém da sua alter-ego?
A Paulette me salvou, ela veio para resgatar a vida que o Paulo perdeu. E, confesso, ela me domina. É alegre, divertida, vibrante, intensa, sincera, dona de um humor ácido e inteligente. A Paulette tem um quê de conto-de-fada, toda trabalhada no rosa e na purpurina – as crianças adoram ela. No fundo, essa sempre fui eu, por isso é tão natural olhar para a Paula e ver a Paulette
Você ainda tem memória do Paulo Sérgio?
Não vivi absolutamente nada até completar 27 anos. Ninguém me convidava para uma festinha na escola… (Aí que trauma!!!!) . Passei 9.855 dias escondida em um corpo que não era meu. Aquela voz não era minha, aquele cabelo não era meu… Nada ali me pertencia. Sei que é difícil para a maioria das pessoas entender, mas se fosse possível resumir em uma palavra o que tenho de lembrança do Paulo, diria: “frustração”
Como você classifica essa questão de gênero?
Nunca me vi como um gênero e não acredito que só se é mulher ou se é homem. Coisa mais retrógrada! Passei muito tempo confinada a uma carcaça andrógina. Até os meus 27 anos eu tinha barba! Só então encarei as cirurgias e passei por cima dos olhares dos outros. Por um tempão, fui vítima de bullying, e mesmo assim, nunca me permiti cair em depressão. Então, gênero nada mais é do que um conceito ridículo, estabelecido sei lá por quem. Cada um que seja feliz sendo nêutron, próton ou elétron! Hahahaha!
Dia perfeito? Jantar com um bofe bafônico e noite quente de sexo
Sou muito carinhosa e faço questão da reciprocidade
Você é exageradamente feminina. Isso é um problema?
Para mim, a feminilidade está na alma. É imperativa. Não sei não ser feminina, não passar batom ou abotoar o sutiã pela manhã. Adoro o que vejo no espelho. Mas em alguns casos, a minha feminilidade incomoda. E atribuo isso ao fato de a travesti ser considerada um “playground com brinquedo a mais”. É chulo, sem dúvida, mas enquanto formos vistas como fantasias sexuais, não haverá argumento para mudar esse cenário
O que altera o seu humor?
A vida me faz feliz. Acordo bem, rindo. O meu gato me faz feliz, as minhas roupas me fazem feliz, os meus amigos me fazem feliz. Triste eu só fico quando descubro que o príncipe é um sapo, cheio de recalques e ainda por cima quer fazer a “passiva”. Eu, hein?!!!
Posar nua foi mais uma conquista?
Já fiz ensaios sensuais, mas nenhum deles aos 45 – e paro de contar a idade por aqui! Hoje sou ainda mais mulher, então tem a ver com o fato de me sentir confortável comigo. A imagem que reflito é sexy, gostosa, poderosa e superpegável!!!
Para mim, a feminilidade está na alma. Não sei não ser feminina
Como você define a pessoa que se tornou?
Diante de todas as adversidades, como sair de uma cidade pequena e vir de uma família sem posses, acredito que tenha conseguido chegar ao topo (ou pelo menos bem perto dele). Sinto-me realizada, mas ainda penso que falta alguma coisa em mim. É uma lacuna que talvez a terapia ajude a encontrar a resposta (ou o meu dinheiro não está sendo bem empregado! Risos).
O que é ser travesti no Brasil do século 21?
Percebo que as pessoas querem se definir e há uma importância muito grande em ser aceito pela sociedade. Porém, a questão do preconceito é cada vez mais evidente, e nem começamos a engatinhar sobre esse tema. Embora tenhamos saído das sombras, sem educação não há muito o que fazer – e quantas travestis você conhece que são caixas de banco, administradoras, advogadas, delegadas, médicas, jornalistas, estilistas ou professoras? Não é raro notar que a travesti é vista como personagem de fetiche e não como um ser humano capaz – e olha que estamos passando agora por um movimento (politicamente correto) que nos alçou a condição de transexual. Fico aqui matutando porque diabo o mundo virou “transex”? Todo mundo cortou o pau? Esse é um preconceito que vem da própria travesti, que absorveu a ladainha da sociedade que exige cinco filhos após o casamento. O problema é que a “neoxoxotinha” não vem com útero! Mas, enfim, num país em que as mulheres são assassinadas por seus companheiros, o aborto é crime e o estupro coletivo virou moda, pensar que uma travesti possa desfrutar dessa tal “cidadania” é, no mínimo, pretensioso.
Gênero nada mais é do que um conceito ridículo
A Paulette me salvou, resgatou a vida que o Paulo perdeu
Veja também os ensaios sensuais de:
Anne Monteiro
Lays Orsini
Kamila Kruger
Diretor – André Jalonetsky
Fotografia – Lu Costa
Entrevista – Patrícia Favalle
Vídeo – Vanessa Fonseca
Edição de Video e Pós Produção – Cezar Lazzuri Films
Cabelo e Make – Silvio Domingues