Em 2017, além de todas as tramas políticas, a população brasileira acompanhou outros terríveis episódios da injusta correlação de poder da nossa sociedade. No dia 19/04, nove trabalhadores rurais foram assassinados em Taquaruçu do Norte, distrito de Colniza, noroeste do estado de Mato Grosso; pouco mais de um mês depois, no dia 24/05, outros dez trabalhadores perderam a vida em Pau D’arco, no sudoeste do Pará.
Os fatos, que já são bárbaros por si só, se tornam ainda mais graves a partir das constatações que relacionam esses e outros casos de assassinatos na luta pelo direito constitucional à terra: policiais ou agentes da segurança executam as pessoas a mando de fazendeiros ou grileiros. Quem acompanhou a investigação viu que os depoimentos coletados evidenciam isso.
Mas o que parece fato isolado, chocando os leitores e telespectadores dos muitos noticiários, infelizmente faz parte do cotidiano de muitas famílias. Em Mato Grosso, duas situações atuais apontam que, se os conflitos no campo não forem tratados com a seriedade e o compromisso necessários pelos órgãos competentes, novas chacinas poderão ocorrer a qualquer momento.
Uma denúncia recente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) e do Fórum Direitos Humanos e da Terra pautou novamente a questão e, imediatamente, diversos movimentos sociais no estado se mostraram solidários e se comprometeram a acompanhar, entre eles a Associação dos Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso – Seção Sindical do ANDES Sindicato Nacional (Adufmat – Ssind), que visitou duas áreas na Região Norte na última semana.
Tortura e terrorismo em Nova Guarita
Ameaças, tiros, cortes das cercas para que os animais escapem, casas e terrenos queimados, pulverização de veneno sobre as casas e plantações, tortura. Todas essas ocorrências assombram os trabalhadores do Assentamento Raimundo Vieira III, Lote 10 – Gleba Gama, no município de Nova Guarita, localizado à 682 km ao norte de Cuiabá – Mato Grosso.
Mais de 200 boletins de ocorrência e registros em instituições competentes já foram efetuados pelas 12 famílias assentadas pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) no local há cerca de 12 anos. O último dos documentos registrou a tortura de um casal na presença da filha, de 3 anos, no dia 19/08. Quando perceberam que os já conhecidos capangas estavam em seu pasto, o casal correu para tentar evitar mais um episódio de maldade, mas caiu numa emboscada. Os dois foram amarrados e agredidos por cinco pessoas, com socos, chutes e pauladas, além de serem amarrados na cerca de seu lote. Os vizinhos que tentaram se aproximar para ajuda-los foram impedidos por tiros.
Área queimada pela família Braga. Ao fundo, local onde ocorreu a tortura do casal de trabalhadores
Os próprios agressores acionaram a Polícia, invertendo a ordem dos fatos, e afirmando que prenderam e torturaram para evitar que o casal incendiasse a área. Assim como, em outras ocasiões, tentaram justificar agressões alegando que os assentados prejudicam flora e nascentes da região. No dia 19/08, quando os policiais militares chegaram ao local do crime, levaram o casal até a delegacia, mas os responsáveis pela agressão foram liberados para depor no dia seguinte, e ir à polícia por conta própria.
A denúncia dos trabalhadores inclui relatos que evidenciaram o respaldo do responsável pela Segurança Pública no local. “Pode amarrar, porque a polícia mandou” teria dito a esposa de Carlos.
Adufmat-Ssind e CPT em diálogo com os trabalhadores do Lote 10
Após investigações, a polícia civil registrou evidências de que o casal não foi responsável pelo incêndio, como alegaram os agressores. “Quando a polícia civil chegou para investigar, na tarde do dia seguinte, pegou os funcionários do fazendeiro no terreno, e o fogo estava começando. Ele tinha dito no depoimento que a gente incendiou tudo”, disse a trabalhadora agredida, Amélia Dias de Souza. A perícia também encontrou vestígios dos disparos e até tufos de cabelo das vítimas no local.
Quase um mês depois, as marcas nos corpos do casal ainda são visíveis. As da memória, principalmente da criança que presenciou o crime, serão ainda mais longas. A pequena Ana Clara não quer mais ficar no sítio, está bastante chorosa e assustada. Entendendo que a única maneira de evitar uma tragédia ainda maior, e tentar acabar de vez com os abusos, os trabalhadores denunciaram mais uma vez, em todas as esferas possíveis, inclusive na imprensa, os nomes dos agressores: Carlos Braga e sua esposa, além de dois filhos e dois netos da família Braga.
O acusado tem uma fazenda na região, e ocupava as terras públicas ao redor enquanto não havia assentados. De acordo com os depoimentos dos trabalhadores, durante a tortura, os Braga insistiam em chamá-los de “vagabundos, malditos invasores de terra”. Dois dos acusados já respondem judicialmente por acusações de crimes semelhantes.
Os documentos expedidos pelo Ministério Público, Incra, e Judiciário comprovam que se trata de terra pública destinada à Reforma Agrária, e os assentados são os possuidores legais e legítimos da área. Mesmo assim, assegurados pelas relações políticas, econômicas e até religiosas que têm no local, a família acusada insiste em tentar expulsar os trabalhadores à força. Há sete anos, Braga tentou, na Justiça Estadual, uma reintegração de posse para retirar os assentados, mas teve o pedido de liminar negado. Desde então, as violências passaram a ser ainda mais frequentes, segundo os trabalhadores.
Apesar do medo, o grande envolvimento das entidades sociais e das instituições competentes, como a Defensoria Pública e os Ministérios Públicos Estadual e Federal, deu nova esperança aos trabalhadores do Lote 10, e renovou as forças. Eles aguardam agora o andamento do processo que decidirá sobre a remoção do responsável pela Segurança Pública local, o Sargento Divino, da Polícia Militar, além do encaminhamento das providências com relação às ameaças e torturas realizadas pela família Braga.
O Fórum de Direitos Humanos de Mato Grosso e a Comissão Pastoral da Terra no estado emitiram nota sobre o caso. Em determinado trecho, os assinantes afirmam: “A impunidade torna a vida dessas famílias uma maldição. Denúncias foram feitas em praticamente todos os órgãos e instâncias no Estado de Mato Grosso. Somente na Polícia Militar e Civil foram registrados dezenas de Boletins de Ocorrências, para os Ministérios Públicos Estadual e Federal foram feitas diversas denúncias. Várias outras denúncias foram encaminhas ao INCRA MT, IBAMA, SESP – Secretaria de Segurança do Estado, SEJUDH – Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, Casa Militar, Casa Civil, e ao próprio Governador do Estado. Vários dos crimes praticados contra essas famílias estão registrados em fotos e vídeos. Mas nada e nem ninguém consegue cessar essas violências” (leia a íntegra da nota aqui).
“Há muitos anos a CPT denuncia toda essa violência que os grupos vêm sofrendo nos mais diversos órgãos. Contudo a gente vê omissão ou, em alguns casos, até a conivência do Estado com toda essa violência”, afirma a coordenadora da CPT, Elizabete Flores.
Grilagem em Novo Mundo
Mudas de plantas verdinhas ao lado de uma grande área completamente devastada. São 2 mil hectares e o trabalho será duro para recuperar a terra com plantações variadas para alimentação, e livres de agrotóxico. Poderia já ter começado, se a pessoa que utiliza a terra pública de maneira irregular não tivesse atrasado o processo, alegando que há milho e gado no local que a Justiça mandou desocupar.
No dia 05/09, a Adufma-Ssind esteve na Fazenda Recando, na Gleba Nhandú, município de Novo Mundo, à 773 Km da capital mato-grossense. A região destinada ao assentamento de 96 família, que já tem até o Plano de Ocupação traçado pelo Incra, está completamente livre de qualquer plantação ou animal.
Trabalhadores mostram Plano de Ocupação do Incra para a área
Para chamar a atenção, as 96 famílias que aguardam a autorização para entrar no local resolveram acampar ao lado da fazenda. Apenas a cerca separa o povo da terra reservada a eles. Enquanto isso, idosos, mulheres e crianças dormem e acordam sob lonas, sem qualquer estrutura mínima, aguardando a liberação da Justiça para ocupação do espaço.
A área total da fazenda é superior a 9.600 hectares. A terra é pública, mas a Justiça adiantou uma pequena parte, 2 mil hectares, até que o processo finalmente seja concluído. Enquanto os 7 mil hectares permanecem em litígio, nas mãos do grileiro, o argumento de que o espaço está ocupado segurou o os a parte liberada por mais algum tempo. Mas na próxima segunda-feira, dia 18/09, representantes da Justiça Federal de Sinop, Advocacia Geral da União, INCRA e outras instituições envolvidas, devem fazer uma inspeção ao local, conforme decisão de uma Audiência ocorrida na Justiça Federal de Sinop, para verificação in loco da informação correta.
Visão panorâmica do local destinado ao assentamento das 96 família:
No horizonte dessa primeira imagem, é possível observar as lonas brancas no local onde os trabalhadores estão acampados.
Toda a área que se vê, nas três imagens, representa somente os 2 mil hectares adiantados pela Justiça para as 96 família.
Outros 7,6 mil hectares permanecem em litígio até que o processo seja concluído.
O processo está nas mãos do juiz Murilo Mendes, da 1ª Vara Federal de Sinop, que deve acompanhar a inspeção judicial do dia 18/09. Em conversa com a Adufmat-Ssind no dia 05/09, Mendes confirmou que essa seria a data organizada pela sua assessoria, e que o processo está correndo conforme os tramites legais.
Para a CPT, o processo poderia correr de maneira diferente. “A gente tem observado uma morosidade da Justiça, e isso tem acirrado os conflitos, feito com que a violência seja cada vez mais forte contra os camponeses e camponesas. No norte do estado, em especial, o que os grupos que lutam por terra estão requerendo é a retomada de terras públicas, da União, que foram griladas por latifundiários que têm 5, 10, 14 mil hectares. Quando a Justiça vem para beneficiar os trabalhadores, existe uma espécie de trava para retomada das áreas. Agora, quando é para tirar os camponeses dos seus territórios, beneficiar os fazendeiros e grileiros de terra pública, a Justiça age com uma agilidade, tem força policial disponível, tem recurso disponível. Parece que eles querem vencer os trabalhadores pelo cansaço”, disse a coordenadora da CPT, Elizabete Flores.
A Adufmat-Ssind, solidária à luta dos trabalhadores do campo e da cidade, está acompanhando os casos tanto em Cuiabá quanto em Sinop, onde fica a subsede da Seção Sindical. Em reunião em Sinop no dia 04/09, entidades como o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e Associação dos Docentes da Unemat (Adunemat) discutiram o assunto, e tiraram ações de apoio e acompanhamento. “Como um sindicato classista, e inclusive por deliberação de Congresso do ANDES, o sindicato, por meio do Grupo de Trabalho Políticas Agrária, Urbana e Ambiental (GTPAUA) se dispõe a andar junto nessa luta pelo direito à terra e pela dignidade dos trabalhadores”, afirma Maelison Neves, diretor da Adufmat-Ssind.
Luana Soutos