Intrigante e perigosa a postura da Justiça Eleitoral em permitir a livre existência dos chamados “cheques guarda chuvas” nas prestações de contas dos candidatos nas eleições de 2010, em Mato Grosso.
De um modo geral, inadvertidamente, os julgadores põe em cheque (desculpem a redundância) a própria existência e eficácia dos dispositivos da Lei 9.504/97, principalmente o artigo 17 e seguintes, que tratam da arrecadação de recursos (financeiros, principalmente) e dos gastos, bem como a forma de prestação de contas de campanha.
As recentes decisões da Justiça Eleitoral são arriscadas e questionáveis do ponto de vista teleológico (“desejo” ou finalidade da norma) porque nem todos os jurisdicionados têm merecido o mesmo tratamento, uns recebendo os “benefícios” da lei e a outros sendo entregue a prestação jurisdicional com os rigores da norma (violação à isonomia). Tal postura gera uma desnecessária insegurança jurídica, o que – em última análise – ataca a credibilidade (isenção e inércia) do julgador eleitoral.
É sabido que as normas atinentes ao processo eleitoral são interpretadas pelos julgamentos proferidos pelos tribunais superiores (TSE, principalmente) que expede orientações e instruções por meio de resoluções (art. 233, Código Eleitoral).
No caso das obrigações principais e acessórias referentes à arrecadação e gastos, em obediência ao disposto na minirreforma eleitoral de 2006 (Lei 11.300/06), entendemos que os objetivos são impedir o abuso do poder econômico, fiscalização da origem dos recursos (humanos e financeiros) que patrocinam candidaturas, tudo a permitir eleições limpas.
No bojo de todo esse arcabouço normativo o TSE editou a Resolução 23.217 (publicada em 04 de março de 2010) que emprestou explicações detalhadas ao que contém os artigos 17 a 32 da Lei Geral das Eleições (lei 9.504/97).
A citada resolução (Res. 23.217, TSE) exige a abertura de conta corrente (art. 9º) e a autoriza a movimentação por meio de cartão magnético (art. 29, inciso XVII). Além disso proíbe os depósitos desidentificados (art. 24), uma possibilidade de armadilha por adversários do candidato, e aos bancos diz que não lhes é permitida a cobrança de taxas extraordinárias pela emissão de cheques ou despesas de manutenção da conta corrente (§4º, art. 9º). Em resumida sentença, o candidato, comitê financeiro, partido político ou coligação, deve receber o recurso (dinheiro, cheque, transferência) depositar na conta e movimentar as quantias por meio de cheques ou transferências eletrônicas.
Simples assim, como o uso do cartão de débito para comprar um livro, ali na esquina.
Permitir o uso desmesurado do “cheque guarda chuva” é um atentado à lisura das eleições, transmuda a norma e perverte a vontade do legislador.
Ora, a rigor, a existência da necessidade da prestação de contas eleitorais sempre gerou polêmica porque os técnicos da área de análise de contas, tanto no Tribunal Regional, quanto dos Cartórios Eleitorais, gozam de merecido prestígio e credibilidade junto aos julgadores e promotores de justiça atuantes na área.
Isso é perigoso, porque existe uma enorme carga de subjetivismo em suas análises (na verdade, pareceres opinativos). Assim já se registrou rejeição de contas de candidato a vereador que não apresentou nota de marmitex (um “ranguinho”, nas palavras do juiz do caso), negou-se aprovação a quem não declarou o uso da sua própria motocicleta nos eventos da campanha eleitoral, mera exigência burocrática (doação de si para si mesmo!).
Há mais.
Do folclore registramos o caso de um taxista, candidato, que doou (e registrou) combustível adquirido para a atividade profissional, para a sua própria campanha a vereador. O técnico de contas disse que a gasolina tinha que passar (fisicamente!) pelo caixa do banco, e como não o fez (o banco não tinha bomba de combustível, brincou o taxista) suas contas foram desaprovadas. O juiz não gostou da crítica! (da inexistência de bomba de gasolina no Banco do Brasil para a “operação bancária”).
Tudo isso nos obriga a uma reflexão.
A partir de agora, graças ao advento da Lei da Ficha Limpa e das decisões do Supremo Tribunal Federal (ADCs 29 e 30) ganham enorme relevo os julgamentos que tratam de contas de campanha eleitoral (art. 2º, alínea “j”) e das contas de gestão (art. 2º, 10, alínea “g”) sobre o “ius honorum” (condições de elegibilidade e causas de inelegibilidade) dos cidadãos.
Em tal cenário, quando o Judiciário e as Cortes de Contas saem da condição de auxiliares do processo e se tornam importantes protagonistas da cena eleitoral, sobre suas decisões não podem restar quaisquer dúvidas (insegurança jurídica). A Justiça Eleitoral deve apreciar as demandas observando a intenção do legislador e a busca por eleições limpas e candidatos idem (puros, vestais). Os Tribunais de Contas não podem se valer de pesos e medidas diversas (subjetivismo) e nem excesso de preciosismo em seus julgamentos.
Sob pena de, na mesma medida em que a sociedade avançou com o patrocínio da iniciativa popular da Lei da Ficha Limpa, a Justiça Eleitoral e as Cortes de Contas incentivarem o retrocesso, emprestando inaplicabilidade e inocuidade à LC 135, tornando-a mais uma “lei que não pega”.
*Vilson Nery é ativista do MCCE (Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral) em Mato Grosso.
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Antonio Cavalcante Filho